Copeiro vítima de homofobia recreativa deve receber indenização de R$ 30 mil por danos morais
Resumo:
- Um copeiro sofreu ataques homofóbicos no ambiente de trabalho, sendo constantemente alvo de apelidos depreciativos por parte de colegas e superiores, tais como “bicha” e “gay da noite”.
- A empregadora foi omissa diante das denúncias, não adotando medidas para coibir os abusos.
- A juíza Rachel Albuquerque de Medeiros Mello enquadrou o caso como homofobia institucional e condenou o hospital empregador a pagar indenização por danos morais, fixada em R$ 30 mil.
Um copeiro que prestava serviços em um hospital de Porto Alegre e era alvo de ataques homofóbicos por parte de colegas de trabalho deve receber uma reparação pelos danos morais sofridos. A indenização foi fixada em R$ 30 mil pela juíza Rachel Albuquerque de Medeiros Mello, da 16ª Vara do Trabalho da Capital.
O empregado alegou que era tratado constantemente pela expressão “bicha”, utilizada pelas colegas e superiores em tom de “brincadeira”. As ofensas eram proferidas em público e em alto tom de voz. Ele refere ter reportado os episódios ao setor de Recursos Humanos da empresa que o contratou em mais de uma oportunidade, sem que qualquer medida tivesse sido adotada para coibir tais condutas. Nessa linha, o trabalhador argumentou ter sofrido homofobia recreativa.
A testemunha trazida pelo empregado relatou ter presenciado as piadas e expressões depreciativas dirigidas a ele. Ela afirmou que, nas trocas de plantão, as técnicas de enfermagem se referiam ao copeiro como “bicha” e “gay da noite”, e não pelo seu nome. Os apelidos ofensivos eram utilizados quando o copeiro não estava presente.
Diante dos relatos apresentados, a magistrada concluiu que o trabalhador sofreu tratamento discriminatório em razão de sua identidade afetiva e sexual, configurando assédio moral e discriminação no ambiente de trabalho. Para Rachel, a sistematicidade da conduta discriminatória ficou comprovada pela atribuição de apelidos para o trabalhador, evidenciando que as ofensas não se limitavam a comentários isolados.
A magistrada destacou a menção feita pelo empregado à “homofobia recreativa”. Segundo ela, trata-se de uma estratégia utilizada para normalizar comportamentos discriminatórios, ferindo a dignidade da pessoa e criando um ambiente de trabalho tóxico. Nesse contexto, segundo Rachel, a vítima se sente impotente, desvalorizada e marginalizada.
A sentença também apontou a ausência de ações concretas da empregadora para garantir um ambiente de trabalho respeitoso e livre de discriminação. Para a magistrada, a empresa falhou quanto à obrigação de proteger a integridade emocional e psicológica dos seus empregados.
A sentença destacou o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 e no Mandado de Injunção (MI) nº 4.733, que conferiu à prática de homofobia e transfobia o mesmo enquadramento jurídico do crime de racismo, até que sobrevenha legislação específica. “Essa decisão reafirma que a discriminação motivada por identidade afetiva e sexual constitui grave ofensa à dignidade da pessoa humana, e deve ser combatida com a mesma severidade atribuída ao racismo, dada sua natureza estrutural e difusa”, afirmou Rachel.
Nesse cenário, a magistrada ressaltou os Princípios de Yogyakarta, que delineiam a aplicação dos direitos humanos no contexto da identidade afetiva e sexual e identidade de gênero. Tais princípios reafirmam que todas as pessoas, independentemente de sua identidade afetiva e sexual, têm direito ao pleno exercício dos direitos fundamentais em condições de igualdade e dignidade, inclusive no ambiente laboral. “Eles impõem aos Estados — e, por extensão, a todos os entes obrigados à proteção de direitos — o dever de adotar medidas eficazes para prevenir e punir práticas discriminatórias e violências motivadas por identidade afetiva e sexual ou de gênero”, explicou a magistrada.
Aplicando também ao caso o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a juíza enfatizou que a conduta deve ser analisada com atenção à dimensão estrutural da discriminação, que não se limita ao gênero no sentido binário, mas se estende às expressões da sexualidade e identidade de gênero. Segundo a magistrada, o Protocolo explicita que a heteronormatividade — ou seja, a imposição da heterossexualidade como norma social — constitui uma das principais fontes de opressão contra pessoas LGBTQIAPN+.
Segundo Rachel, a negligência da empregadora configura o que o Protocolo denomina homofobia institucional, ou seja, uma estrutura de tolerância e inação que legitima e perpetua a violência simbólica e subjetiva contra trabalhadores LGBTQIAPN+. “O caso evidencia que o empregado, por ser homoafetivo, foi submetido a uma forma de discriminação sistemática e institucional, reforçada pela omissão da empresa em adotar qualquer medida concreta de prevenção, correção ou apuração das condutas relatadas. A negligência da reclamada demonstra uma falha grave no cumprimento do dever de proteção do empregador, resultando em verdadeira homofobia institucional”, concluiu a magistrada.
A julgadora afirmou que a análise do conjunto probatório seguiu as orientações delineadas pelo Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. O documento preconiza que, em casos de assédio, deve-se reconhecer a dificuldade de obtenção de provas diretas, sendo necessário valorizar os depoimentos coerentes das vítimas e das testemunhas que corroboram a existência do ambiente hostil.
Com relação ao papel do Poder Judiciário no tema da violência de gênero no ambiente de trabalho, a julgadora defendeu que o juiz deve exercer um papel pedagógico e reparador. Nessa linha, à luz do Protocolo, o primeiro passo do julgador consiste em “contar até seis” — metodologia que busca identificar, desde o início do processo, até seis camadas de vulnerabilidade que podem atravessar a parte envolvida: identidade de gênero, raça ou etnia, orientação sexual, classe social, condição de pessoa com deficiência e idade.
“No presente caso, são evidentes os marcadores interseccionais: o empregado é homoafetivo (identidade afetiva e sexual), subordinado em ambiente hospitalar (classe social), e houve omissão da empregadora em coibir os abusos (condição de invisibilização estrutural). A presença desses fatores demanda do julgador uma escuta atenta, empática e descolonizada, que compreenda a vivência do autor em sua complexidade”, argumentou a magistrada.
Nesse cenário, a juíza considerou que as violações cometidas contra o empregado são de natureza grave, fixando a indenização em R$ 30 mil. De acordo com a julgadora, “o dever de reparação moral transcende o caráter compensatório, assumindo uma dimensão política e simbólica de afirmação de direitos”. Segundo Rachel, a responsabilização da empresa e o consequente deferimento da reparação por danos morais constituem medida de Justiça, coerente com os fundamentos constitucionais da República, com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil e com o compromisso da Justiça do Trabalho com a promoção de uma sociedade livre de opressões, violências e silenciamentos.
Cabe recurso da decisão ao Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região.