"Aprendemos que houve uma abolição, mas na verdade nunca tivemos uma ruptura”, afirma cineasta Renato Barbieri em seminário sobre trabalho escravo
Um debate sobre o documentário “Servidão” marcou o final da tarde de terça-feira (27/2) no seminário de combate ao trabalho escravo, em Bento Gonçalves. O filme faz um retrato da realidade desse crime no país. A conversa ocorreu durante uma reunião dos integrantes do Observatório de Direitos Humanos do Poder Judiciário, presencialmente e por videoconferência, e contou com a participação do diretor do filme, Renato Barbieri.
Em seu pronunciamento, Renato Barbieri destacou que o racismo não é uma escolha, mas uma mentalidade cultivada nas pessoas desde a infância. “É uma ausência de escolha. Fomos ensinados a ser racistas. A gente aprende que houve uma abolição, mas na verdade nunca tivemos uma ruptura”, observou. Ele acrescentou que a influência da África é fundamental para a construção da identidade brasileira.
O cineasta defendeu que é necessária uma nova compreensão histórica do país, que deve começar pela erradicação do trabalho escravo. Para isso ocorrer, na sua opinião, é fundamental o engajamento de toda a sociedade. “Precisamos de um trabalho pedagógico em todas as instâncias, a serviço de um sentimento de nação, de humanização”, pontuou. Renato acrescentou que a sociedade atual é desumanizada, e que essa realidade precisa ser enfrentada. “O que vai nos salvar é o Brasil profundo, é lá onde está a humanidade”.
A presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, Luciana Paula Conforti, destacou que é necessária a responsabilização de quem se beneficia do trabalho escravo. “É um crime cometido por quem se aproveita da vulnerabilidade de trabalhadores”, afirmou. A magistrada destacou que o trabalho decente é um direito fundamental, e que deve ser tratado como um tema transversal, que se relaciona com todos os direitos humanos.
O advogado do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, João Carlos Santos Oliveira, observou que obras de arte como o documentário “Servidão” são importantes por aproximarem o público da humanidade das vítimas do trabalho escravo. Ele destacou que um dado importante da obra é trazer o recorte racial, ao deixar evidente que as maiores vítimas desse crime são as pessoas negras. “Há um tipo específico de pessoa selecionada para essa subjugação e desumanização”, comentou. O advogado acrescentou que, no caso do trabalho escravo doméstico, as vítimas majoritariamente são mulheres.
O filósofo Ricardo Rezende Figueira afirmou que o documentário cumpre o papel da arte, que é o de provocar reações. Ele destacou que o trabalho escravo ocorre em diversas modalidades, no passado e no presente, e que a escravidão por dívida é apenas uma delas. Ele ressaltou que o trabalho escravo no mundo não é acidente, mas resultado de um projeto econômico. Acrescentou que houve uma mudança significativa quando as autoridades começaram a se preocupar com o problema, mas o avanço foi lento. “Para que existe a lei? Os direitos humanos existem com uma finalidade: defender os fragilizados. A coisificação do outro é algo inadmissível, a dignidade humana não pode ser ofendida”, sublinhou.
A juíza Claudirene Andrade Ribeiro destacou que a reflexão sobre a inacabada abolição da escravatura envolve um debate sobre a ausência de reforma agrária e de uma política pública eficaz de moradias populares. A magistrada comentou o caso das oficinas de costura clandestinas de São Paulo como um exemplo de trabalho escravo e violação da dignidade humana no país. “O espaço das oficinas se confundia com o espaço de moradia. As trabalhadoras se amontoavam em um cômodo sem ventilação e, durante a pandemia, a situação piorou porque diminuíram as ofertas de trabalho”, destacou. A magistrada acrescentou que as pessoas vulnerabilizadas ficam sujeitas a criminosos e muitas se tornam vítimas de assédio envolvendo tráfico de pessoas e prostituição. Ela destacou que há um recorte racial no crime de trabalho escravo, e que esse recorte também pode ser observado no sistema de justiça prisional e em outras áreas. “A maioria da população aprisionada é negra e a maioria das pessoas submetidas a condições de trabalho infantil também”, afirmou.
A juíza Renata Gil de Alcantara Videira, conselheira do CNJ, participando por videoconferência, afirmou que o único caminho para tirar pessoas da situação de risco de hipossuficiência, abandono e invisibilidade é o trabalho decente. A magistrada declarou que o Judiciário e os órgãos de fiscalização têm a responsabilidade de atuar nesse universo e evitar que mais trabalhadores sejam sacrificados. “Temos tempo de salvar tantas outras pessoas que batem na porta da Justiça e continuam invisíveis a nossos olhos”, acrescentou.
A diretora executiva da Rede Liberdade, Amarilis Costa, avaliou que o documentário reafirma a urgência da centralidade da pauta racial como o principal tema da atualidade. Ela observou que isso provoca um questionamento sobre a existência ou não de uma democracia no Brasil. “Ouso dizer que não alçamos a condição de Estado Democrático de Direito, em razão da chaga social que ainda está exposta no nosso país”, afirmou. Amarilis também defendeu a importância de maior representatividade negra no Parlamento brasileiro.
A representante da ONG Themis Jessica Pinheiro abordou em sua fala as dificuldades enfrentadas por trabalhadoras domésticas. Ela destacou que a categoria só passou a ter direito à Carteira de Trabalho a partir da década de 70 e que ainda não possuem alguns dos direitos hoje garantidos aos demais trabalhadores. “São mais de seis milhões de trabalhadoras domésticas no Brasil. Elas são o epicentro dos marcadores sociais de gênero, raça e classe. São o centro da solução para a justiça social e o trabalho decente”, concluiu.
O debate foi mediado pela juíza do Tribunal de Justiça do Rio Grando do Sul e juíza auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça Karen Luise Vilanova Batista de Souza. Ele ocorreu durante a 2ª Reunião do Observatório de Direitos Humanos (ODH) do Poder Judiciário do biênio 2023-2025. “O Observatório é um espaço de escuta da sociedade civil, democrático, que amplia nosso olhar e nos ajuda a pensar em um Poder Judiciário mais inclusivo”, destacou a juíza auxiliar da Presidência do Tribunal Superior do Trabalho Gabriela Lenz de Lacerda, uma das integrantes do comitê executivo do ODH.
Realização
O seminário “Direito fundamental ao trabalho decente: Caminhos para a erradicação do trabalho escravo contemporâneo” é uma realização conjunta da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (EJud4), da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (ENAMAT); do Programa Nacional de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, ao Tráfico de Pessoas e de Proteção ao Trabalho do Migrante, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Observatório dos Direitos Humanos do Poder Judiciário. Ele também conta com o apoio da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região (AMATRA IV); da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA); da Escola de Magistrados e Servidores do TRF da 4ª Região (EMAGIS), da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Ministério Público do Trabalho do RS (MPT/RS).