Instituições debatem fiscalização, proteção ao migrante e combate ao trabalho escravo em Vacaria
Após a abertura do Projeto Itinerante RS – Trabalho Decente, realizada em Vacaria, nesta quarta-feira (29/10), a programação seguiu com painéis temáticos voltados à promoção dos direitos trabalhistas, à fiscalização das condições de trabalho e ao enfrentamento do trabalho escravo e do tráfico de pessoas.
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A iniciativa é uma parceria entre o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-RS), o Ministério Público do Trabalho (MPT-RS) e o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), e tem como foco aproximar o poder público das comunidades locais, especialmente em regiões que recebem trabalhadores migrantes durante os períodos de safra.
Fiscalização do trabalho e prevenção de irregularidades
O primeiro painel, “Atuação da Fiscalização do Trabalho na Garantia do Trabalho Digno no RS”, foi conduzido pelos auditores fiscais Lucilene Pacini e Rafael Zan, que destacaram o papel educativo da inspeção do trabalho e a importância da cooperação entre produtores, empregadores e o poder público.
Lucilene iniciou sua fala contextualizando a atuação da fiscalização na região dos Campos de Cima da Serra. A auditora ressaltou que muitos dos casos de trabalho análogo à escravidão no Estado decorrem de promessas enganosas de emprego, que resultam em retenção de salários, alojamentos precários, jornadas exaustivas e falta de alimentação adequada.
“O trabalhador vem em busca de um salário digno e encontra aqui o trabalho escravo. Muitas vezes ele chega com uma falsa proposta e acaba preso em um ciclo de dívidas e exploração”, afirmou.
Segundo Lucilene, as fiscalizações seguem o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo, que prevê a atuação conjunta de auditores do Ministério do Trabalho, procuradores do MPT e forças policiais.
“As denúncias chegam, e nós formamos equipes interinstitucionais para averiguar. É um trabalho minucioso, que busca elementos para caracterizar se há ou não condições análogas à escravidão”, explicou.
A auditora descreveu situações observadas em fiscalizações no Estado: trabalhadores alojados em galpões improvisados, sem água potável, energia elétrica ou banheiros, além de alimentação escassa e insalubre.
“Em alguns casos, encontramos trabalhadores dormindo sobre tábuas ou espumas no chão, comendo o que conseguiam caçar. Isso é desumano e caracteriza condições degradantes”, destacou.
Lucilene também alertou para outras práticas recorrentes, como o pagamento em cheques sem fundo ou com ágio no comércio local, a retenção de parte do salário para cobrir custos abusivos de moradia e alimentação e até pagamentos em bebidas ou drogas.
“O combate ao trabalho escravo é uma questão de justiça social. Quando alguém se beneficia da exploração, toda a sociedade perde: o trabalhador perde direitos, o Estado perde arrecadação, o sindicato perde voz e o mercado perde equilíbrio”, afirmou.
Ela destacou ainda as consequências administrativas para os empregadores flagrados em irregularidades, como multas, inclusão no cadastro de empregadores que se beneficiaram de trabalho escravo (a chamada “lista suja”) e restrições de crédito.
“É importante que haja responsabilização. O trabalho escravo tem uma finalidade econômica, e por isso o enfrentamento também precisa atingir o bolso de quem se beneficia dele”, concluiu.
Em seguida, o auditor fiscal Rafael Zan apresentou um panorama histórico e prático das operações de resgate realizadas na região. Ele iniciou sua fala mostrando um vídeo gravado durante uma fiscalização em Nova Petrópolis, para ilustrar que o problema do trabalho escravo “não está distante, mas muito próximo de todos”.
“A gente imagina que isso acontece lá no interior do Mato Grosso, em barracas no meio do mato, mas a verdade é que os casos estão a poucos quilômetros de nós. O problema é local e precisa da atenção de toda a sociedade”, ressaltou.
Zan relatou alguns dos principais casos de resgate de trabalhadores nos Campos de Cima da Serra, especialmente em Vacaria, Bom Jesus e São João, envolvendo trabalhadores indígenas, migrantes do Maranhão e da Argentina.
Ele descreveu situações de menores de idade empregados em colheitas, ausência de equipamentos de proteção individual (EPIs) e alojamentos sem condições sanitárias.
O auditor também mencionou casos recentes de exploração associada ao tráfico de drogas, em que empreiteiros aliciavam pessoas em situação de vulnerabilidade e mantinham “pousadas” ou alojamentos precários sob vigilância armada.
“Em alguns desses locais, encontramos fichas com as dívidas dos trabalhadores e registros de consumo de drogas como forma de pagamento”, relatou.
Zan destacou ainda a limitação estrutural da fiscalização no Brasil. “Em 2007, tínhamos quase três mil auditores fiscais em atividade. Hoje somos menos de dois mil. É um cobertor curto. Fazemos o máximo possível, mas não conseguimos atender a todas as denúncias. Por isso é tão importante atuar de forma preventiva e com apoio das instituições locais”, afirmou.
“O empregador não é inimigo da fiscalização — é parceiro. Quando age corretamente, ele fortalece o trabalho digno e protege o próprio setor produtivo”, concluiu o auditor.
Atuação do MPT na promoção dos direitos trabalhistas
Na sequência, a procuradora do Trabalho Franciele D’Ambros, coordenadora da Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas) no Rio Grande do Sul, apresentou o painel “Atuação do MPT na Promoção dos Direitos dos Trabalhadores do RS”.
Franciele iniciou sua exposição explicando a natureza e as atribuições do Ministério Público do Trabalho (MPT), destacando que o órgão é “uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
Ela observou que o MPT atua exclusivamente na esfera trabalhista e de forma autônoma, ainda que em cooperação com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e a Justiça do Trabalho.
“Muitas pessoas confundem as funções dessas instituições. O MTE fiscaliza e orienta; a Justiça do Trabalho julga; e o MPT atua na defesa coletiva dos direitos, especialmente quando há repercussão social”, explicou.
A procuradora destacou as oito coordenadorias temáticas que orientam a atuação do órgão — fraudes trabalhistas, liberdade sindical, meio ambiente de trabalho, promoção da igualdade, combate ao trabalho escravo e tráfico de pessoas, administração pública, proteção da criança e do adolescente, e trabalho portuário e aquaviário.
Explicou que o MPT atua prioritariamente em casos que envolvem relevância social e repercussão coletiva, e não em demandas individuais.
“Nossa atuação é coletiva e despersonalizada. Atuamos quando há violação de direitos que afetam um grupo ou uma categoria”, ressaltou.
Franciele explicou ainda que a atuação se divide em duas grandes frentes — extrajudicial e judicial. Na primeira, o MPT recebe denúncias, chamadas de “notícias de fato”, que podem resultar em inquéritos civis, recomendações ou Termos de Ajustamento de Conduta (TACs).
“O TAC é uma excelente ferramenta de construção de soluções conjuntas. Ele não impõe uma sanção imediata, mas cria um espaço de diálogo e de correção de rumos entre o Ministério Público e a empresa”, afirmou.
Ela destacou também que a atuação do MPT é pautada por rigor técnico e pela busca de soluções preventivas. “Nem toda denúncia resulta em punição, mas todas são analisadas com seriedade. Quando há irregularidade, buscamos primeiro orientar, depois ajustar e, se necessário, acionar o Judiciário”, disse.
A procuradora apresentou dados da Procuradoria do Trabalho em Caxias do Sul, que abrange 63 municípios da região, incluindo todos os dos Campos de Cima da Serra. Até outubro de 2025, o órgão havia recebido 920 denúncias, sendo 52 relacionadas a trabalho escravo.
“Vacaria está em primeiro lugar na região, com 21 notícias de fato registradas somente neste ano”, informou.
Os principais temas das denúncias incluem acidentes de trabalho, falta de registro em carteira, irregularidades contratuais, condições sanitárias precárias e trabalho infantil. Franciele observou que, muitas vezes, fiscalizações iniciadas por outros motivos acabam revelando situações de condições degradantes.
A procuradora também apresentou o procedimento conduzido pelo MPT em Caxias do Sul voltado ao trabalho de migrantes indígenas — um fluxo que ocorre anualmente entre Mato Grosso e Rio Grande do Sul. O objetivo é garantir que as contratações sejam regulares e respeitem os direitos fundamentais.
“Sabemos que o fluxo migratório intenso traz desafios. Por isso, recomendamos que as empresas tenham cuidado redobrado na contratação, no alojamento e no pagamento dos trabalhadores. A migração não pode ser sinônimo de vulnerabilidade”, afirmou.
Ela explicou que, em 2024, o MPT expediu recomendações preventivas a empresas da região para evitar abusos, como pagamentos em cheques com ágio, cobrança de taxas comunitárias por lideranças indígenas e contratações mediadas por atravessadores.
“O diálogo direto com o trabalhador é essencial para evitar a exploração. Quanto mais reduzirmos a intermediação, menor será o risco de precarização”, reforçou.
Franciele finalizou sua fala lembrando que o combate ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas é parte da construção de uma sociedade justa.
“Trabalho decente é o patamar mínimo civilizatório. Antes mesmo de falar em carteira assinada ou salário, precisamos garantir dignidade e respeito a quem trabalha”, concluiu.
Integração institucional e compromisso social
Encerrando as exposições, o painel “Programa de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, ao Tráfico de Pessoas e de Proteção ao Trabalho do Migrante” foi conduzido pelo desembargador Manuel Cid Jardon e pelo juiz Charles Lopes Kuhn, gestores regionais do programa no TRT-RS.
Os magistrados apresentaram os eixos de atuação da iniciativa, que envolvem ações educativas, produção de conhecimento e articulação com órgãos públicos e entidades da sociedade civil.
O desembargador Manuel Cid Jardon iniciou sua fala destacando que o combate ao trabalho escravo exige reflexão e diálogo entre diferentes áreas do conhecimento. Para ele, o Direito não se limita ao aspecto jurídico: é uma construção social que depende da linguagem e da capacidade de argumentar.
“Não há como compreender o Direito sem dominar a linguagem”, observou, ressaltando que a argumentação é um instrumento essencial para promover justiça e cidadania.
Jardon afirmou que a escravidão contemporânea é uma herança histórica de desigualdades e dominação, que se perpetua sob novas formas. “A escravidão é uma erva daninha que cresce a céu aberto”, disse o magistrado, defendendo a necessidade de “plantar a semente do trabalho decente em cada comunidade, especialmente nas regiões mais vulneráveis”.
Durante a exposição, o desembargador relembrou a história de Dona Pureza, mãe do trabalhador Abel, vítima de escravidão contemporânea no Maranhão e protagonista do filme “Pureza”. A narrativa, destacou, simboliza a luta de milhares de brasileiros e brasileiras que ainda enfrentam a perda da dignidade em busca de sustento.
Ele também abordou marcos históricos do enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil, como o reconhecimento oficial do problema em 1995 e a Chacina de Unaí, em 2004, que resultou na morte de três auditores fiscais e um motorista. O episódio, lembrou Jardon, foi decisivo para consolidar a data de 28 de janeiro como o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.
O magistrado salientou que, embora o país tenha sido tardio nesse reconhecimento, o Brasil hoje possui um dos sistemas mais avançados do mundo no combate ao trabalho escravo, com grupos móveis de fiscalização e aplicação de normas internacionais da OIT. “Os juízes brasileiros passaram a incorporar as normas internacionais em suas decisões, o que representa um avanço civilizatório importante”, afirmou.
Ao comentar o artigo 149 do Código Penal, Jardon explicou que basta a comprovação de uma das condutas descritas — como jornada exaustiva, condições degradantes ou restrição de locomoção — para configurar o crime.
“A escravidão não é moderna, é arcaica. Os métodos continuam os mesmos: a privação da liberdade e a negação da dignidade humana.”
O desembargador também alertou para a presença da exploração em ambientes urbanos, inclusive domésticos. O trabalho escravo, disse, “não está apenas nas fazendas ou plantações, mas nas cidades, muitas vezes disfarçado de relação familiar ou de ajuda informal”.
Ao falar sobre o Programa Nacional de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, criado pelo TST em 2023, Jardon destacou o compromisso do TRT-RS em difundir conhecimento e fortalecer parcerias institucionais. Ele lembrou ainda que, em 2024, foi lançado o Protocolo de Julgamento de Casos de Trabalho Escravo, documento que orienta magistrados sobre a análise de processos envolvendo situações de violação grave de direitos.
Para Jardon, o protocolo é uma ferramenta viva, voltada à formação humanista da magistratura. “Julgar casos de trabalho escravo exige sensibilidade e empatia. O juiz precisa compreender o contexto social e o sofrimento da vítima”, afirmou.
O desembargador encerrou reforçando que a Justiça do Trabalho deve ser dialógica e comprometida com a transformação social. Ouvir, compreender e agir com humanidade, concluiu, são passos fundamentais para garantir o trabalho digno e combater todas as formas de exploração.
O juiz Charles Lopes Kuhn, que também integra a coordenação regional do programa, iniciou sua fala destacando a importância da integração entre as instituições públicas e da aproximação com as comunidades locais. Ele observou que o Brasil vem se articulando cada vez mais no enfrentamento à exploração laboral e que a cooperação entre Justiça do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e Ministério do Trabalho e Emprego é essencial para resultados concretos.
Charles recordou passagens históricas do combate ao trabalho escravo no país, como o caso Brasil Verde, que levou o Estado brasileiro a ser condenado por omissão perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. “Esses episódios nos lembram que o país precisou aprender pela dor o valor da proteção ao trabalho humano”, disse.
O magistrado também fez um paralelo entre os desafios do passado e os riscos do presente, citando relatos de atuações criminosas e de facções no agenciamento de trabalhadores, o que reforça a necessidade de vigilância e ação coordenada. Ele compartilhou experiências pessoais como juiz e relatou a dificuldade enfrentada pelo poder público para garantir segurança e proteção a trabalhadores ameaçados.
“Essas situações mostram que o trabalho escravo e a exploração não são coisas distantes — estão perto de nós, mudando apenas de forma e de rosto”, afirmou.
Ao abordar o conceito de trabalho decente, o juiz ressaltou que a expressão reúne um universo de significados e simboliza a essência da dignidade humana. “O trabalho não nos dá apenas sustento, ele nos dá uma razão para acordar, uma identidade, uma função social”, destacou.
Em tom reflexivo, o juiz observou que a empresa também tem um papel social e não pode se dissociar da ética e da responsabilidade coletiva. Ele citou o pensamento de um professor espanhol, para quem “a empresa é um instrumento de produção e de distribuição da riqueza” — devendo, portanto, servir à sociedade, e não apenas ao lucro.
O magistrado alertou que, embora o empreendedor enfrente desafios complexos, isso não justifica a violação de direitos. “Há quem lute para competir de forma justa, melhorar processos e gerar emprego, mas há também quem busque vantagem sacrificando os mais vulneráveis”, afirmou.
O magistrado destacou ainda que o combate ao trabalho escravo passa por mudanças estruturais, incluindo o fortalecimento da documentação e da formalização das relações de trabalho. “A carteira assinada e o contrato são instrumentos de liberdade para o trabalhador e de segurança para o empregador”, enfatizou.
Ele também ressaltou o papel da tecnologia na fiscalização moderna, citando o uso de drones, satélites e rastreamento digital como ferramentas para identificar situações de exploração e ampliar a responsabilização nas cadeias produtivas.
Encerrando sua fala, o juiz defendeu que o enfrentamento ao trabalho escravo é um dever compartilhado entre o Estado, as empresas e a sociedade civil.
“O combate à exploração humana não se faz apenas com leis, mas com consciência e ação coletiva. Precisamos construir o futuro com base no respeito, na solidariedade e na responsabilidade social”, concluiu o juiz.
Atendimento à imprensa
Durante a passagem por Vacaria, o desembargador Manuel Cid Jardon e o juiz Charles Lopes Kuhn também participaram de entrevistas em veículos locais, ampliando o alcance das discussões sobre trabalho decente e combate ao trabalho escravo.
Os magistrados estiveram na Rádio Esmeralda, no programa Fala Cidade, conversando com o jornalista Miro Santos; na Rádio Fátima, no programa Temática, em entrevista a Ronaldo Pontel; e no podcast Diário de Vacaria, conduzido por Lucas Barp.
Nas conversas, falaram sobre o Programa de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, ao Tráfico de Pessoas e de Proteção ao Trabalho do Migrante, destacaram o papel educativo das ações do TRT-RS e refletiram sobre os desafios de garantir condições dignas e seguras de trabalho para os migrantes que movimentam a economia regional.
Fizeram parte da comitiva do TRT-RS em Vacaria os servidores Elen Cristina Presotto, Cícero da Silva Ferreira, Lauren Fernanda Redin e Eliane Cristina Pereira da Silva, da Coordenadoria de Sustentabilidade, Acessibilidade e Inclusão; Rafael Filla Nunes, do Cerimonial; Paulo Ricardo Pereira, do Transporte; Rodrigo Navarro Roxo, Maurício Oliveira do Amaral e Luis Evandro Brasil, da Polícia Judicial; e Liliam Oliveira Pereira, da Secretaria de Saúde.


