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Publicada em: 12/04/2022 15:16. Atualizada em: 12/04/2022 15:45.

Entrevista: "A descoberta tardia do autismo é mais comum em mulheres", afirma a arquiteta Carol Cardoso, diagnosticada com o Transtorno aos 21 anos

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Carol Cardoso é parda, tem o cabelo liso e comprido preto, usa óculos de armação redonda preta e batom escuro. Está sorrindo para foto. "Uma vez, na adolescência, eu convidei meus colegas para irem no cinema comigo e ninguém foi. Naquele dia eu vi que precisava adotar estratégias para conseguir conviver e ter amigos de verdade". A arquiteta recém formada Carol Cardoso relembra esse episódio ao falar sobre as dificuldades de interação social trazidas pelo autismo. Ela foi diagnosticada com o Transtorno do Espectro Autista (TEA) aos 21 anos de idade. Atualmente com 24, Carol ainda tem grandes desafios a serem enfrentados em função disso, mas agora tem mais consciência das suas características e das iniciativas que pode tomar para minimizar esses efeitos.

Na infância, essas dificuldades traduziam-se até mesmo em repercussões físicas, como crises de ansiedade e desmaios na escola. O excesso de estímulos, como barulho e aglomerações, causavam alterações sensoriais impactantes, mas na época ninguém associava essas perturbações ao autismo. "Eu era lida como uma criança estranha, que se escondia dos outros", recorda.

Hoje, além da arquitetura e outros tópicos de interesse, ela é uma estudiosa das questões do autismo e seus atravessamentos possíveis, tais como gênero, raça e classe. Também participa do podcast Introvertendo, onde aborda esses e outros temas, sob a perspectiva teórica e também prática de quem vive o autismo no cotidiano.

Nessa entrevista à Secretaria de Comunicação do TRT-4, Carol falou sobre suas experiências com o autismo, sobre as possíveis diferenças causadas pelo gênero às mulheres que estão no Espectro e sobre o feminismo como possível suporte para as questões que afligem as mulheres com autismo e as mães de filhos autistas, dentre outros assuntos.

A entrevista faz parte da série de publicações que o TRT-4 vem fazendo em alusão ao Mês de Conscientização sobre o Autismo. 

Uma pergunta sempre importante a se fazer quando se fala em autismo é sobre a busca pelo diagnóstico. No seu caso, em que momento isso aconteceu? Como foi?

Eu passei alguns anos na faculdade e comecei a ter muita dificuldade de me desenvolver nesse ambiente. Era um ambiente muito diferente, tinha muito mais gente que na minha escola, atividades muito variadas, e isso junto com questões emocionais e de relacionamento amoroso que eu não estava conseguindo conduzir. Para quem tem autismo, a socialização para relações amorosas pode ser um desafio imenso. Eu desenvolvi um quadro depressivo e fui fazer tratamento em uma clínica. Lá os profissionais levantaram a hipótese do autismo. Eu já estava no oitavo semestre da faculdade, passei todo esse tempo com muitas dificuldades. Só depois do diagnóstico consegui me comunicar com a coordenação do meu curso sobre o que eu sofria e também ter mais suporte nessa clínica.

Então houve muitas mudanças depois de saber que você era autista? 

As pessoas com as quais eu convivia sempre notavam algo "esquisito", uma peça estranha faltando. A peça era o autismo. Se você não sabe das características do autismo, pensa que a pessoa faz de propósito algumas coisas. Por exemplo, quando falavam algo em duplo sentido e eu não entendia, perguntava porque estavam falando daquele jeito, elas achavam que eu estava sendo inconveniente de propósito. Ou quando contavam uma piada e eu não entendia, respondia séria, achavam que eu estava sendo sem graça também de propósito. Isso, cumulativamente, acaba comprometendo muito a percepção que as pessoas têm da gente.

Atualmente, quais são seus principais desafios quanto ao autismo?

Hoje em dia um dos maiores desafios que eu tenho é sair de casa, porque eu me mudei recentemente para São Paulo e aqui as questões sensoriais são muito mais delicadas, a cidade é muito mais caótica. Eu vim de Macapá e lá não havia tanta gente, tantos carros, tanto barulho, a gente tinha menos estímulos. Logo que eu cheguei eu tinha muitas crises. Mesmo hoje eu só consigo transitar pela cidade com protetores auriculares.

A socialização também é muito difícil, porque se eu não consigo sair de casa eu acabo limitando muito minha capacidade de interagir. Mesmo quando eu saio, sinto muitas dificuldades, eu não consigo iniciar uma conversa, puxar papo, eu simplesmente travo, minha voz não sai. Com terapia eu consegui melhorar muita coisa, principalmente quanto à minha autonomia. Hoje eu consigo gerenciar quase tudo sozinha na minha vida, até fazer compras no mercado. Mas logo que cheguei aqui, teve vezes de eu ir no mercado e voltar sem comprar nada, por não tolerar aquele ambiente. Vi que em um município adotaram a hora do silêncio nos mercados, isso seria ótimo, porque se tivermos um momento sem aqueles anúncios, sem aquelas luzes piscando, seria muito bom. É uma questão de acessibilidade também.

Durante muito tempo dizia-se que o autismo era um transtorno predominantemente masculino, não sei se isso ainda é aceito. O autismo atinge diferente as mulheres por causa de questões de gênero?

Não saberia afirmar se é diferente na origem, porque essa questão de gênero é muito extensa. Mas o que eu percebo é que existem diferenças nas percepções de mulheres autistas e de homens autistas. Já começa pelo diagnóstico. São muito mais comuns os diagnósticos tardios em mulheres autistas que em homens. Os próprios manuais de diagnósticos são baseados em características mais masculinas. Essa discussão das diferenças está em emergência agora. Eu acho muito mais comum as mulheres terem outros diagnósticos antes do autismo. Ouvi de uma psicóloga que ela pensava que autismo dava mais em homens e em crianças, era difícil para ela imaginar que eu pudesse ser autista. Ainda existe a discussão da cor azul representar o autismo, do autismo ser algo masculino, o que não se confirma.

Mas nas produções culturais ainda se vê muito mais homens representando personagens com autismo...

A gente vê homens falando mais sobre qualquer assunto que seja, no autismo não seria diferente. Na comunidade autista tem isso de só falar de autismo, não colocar em questão esses atravessamentos, como raça e gênero, sendo que isso contribuiria muito para o entendimento do próprio autismo. Levantar as vozes dessas pessoas sendo mulheres, não brancas, que conseguiram ter seu diagnóstico, possibilitaria a discussão de questões que, ao mesmo tempo que não são diretamente ligadas ao autismo, são modificadoras da nossa condição, e inseparáveis do indivíduo como um todo. A gente é autista, mas também é irmã, mãe, mulher, pertence a uma comunidade regional, a uma etnia, a um grupo racial... A gente é tudo isso ao mesmo tempo, desvincular essas questões é contraproducente.

Por que há menos acesso ao diagnóstico por parte das mulheres?

Eu não saberia dar uma resposta objetiva sobre isso. Acho que é mais comum você vincular as características comuns do autismo a uma ideia de feminilidade que se espera, uma pessoa submissa, que não levanta sua voz para falar sobre qualquer assunto. Talvez isso contribua para que aquela pessoa seja entendida como aquilo que se espera de uma mulher, e não uma autista. Mas até essa leitura traz um pouco do estereótipo da mulher autista, uma mulher quieta. E quando não é quieta, pode ser diagnosticada com outras coisas, como borderline, bipolaridade, pode ser uma autista com diagnóstico errado. Não saberia uma resposta definitiva, mas acho uma ótima questão, mais importante de ser perguntada do que respondida, nesse momento.

Você se considera feminista? Existem feministas na comunidade autista? Como é a receptividade das mulheres com autismo no movimento feminista?

Eu me considero feminista, apesar de, nesse momento, não estar me empenhando muito nessa formação. Mas procuro me informar sobre as pautas e discutir. A questão do feminismo no autismo é essencial, também porque o movimento autista é muito protagonizado pelas mães de autistas. Entender também a sobrecarga da maternidade atípica, mães que têm filhos com deficiência e são sobrecarregadas. O cuidado é relegado às mães, não existe uma comunidade capaz de contribuir para o desenvolvimento dessas crianças. Tem também as mães autistas de filhos autistas, duplamente oprimidas, por serem mulheres e pessoas com deficiência, tudo ao mesmo tempo... É preciso colocar em pauta essas demandas, e o feminismo pode ser um suporte a isso.

Alguns grupos de pessoas negras e mesmo com deficiência têm críticas ao movimento feminista, porque seria um feminismo branco, de classe média ou média alta, e não contemplaria as questões de raça, deficiência e outros atravessamentos, ou seja, não seria um feminismo para todos. Você sente isso em relação ao autismo?

Certamente. Na primeira vez que eu fui tentar me integrar a um coletivo feminista foi muito complicado. Não consegui participar das atividades, tentei colocar como sugestão uma discussão sobre mulheres com deficiência e recebi como resposta algo do tipo "vamos colocar essa pauta depois, olha o quanto de coisas que temos que discutir, se você quiser pode tocar essa pauta paralelamente". A gente sofre muito isso. Um livro que acho muito importante para começar essa discussão é o Mulheres, Raça e Classe, da Angela Davis. É importante discutirmos o quanto mulheres brancas podem contribuir para a opressão de mulheres negras, o quanto autistas brancos podem contribuir para opressão de autistas não brancos, mesmo que não seja pensado, mas que pode ocorrer porque estruturalmente a sociedade é construída dessa forma.

Ao mencionar que os relacionamentos amorosos podem ser um grande desafio para quem tem autismo, você contou que atualmente tem uma namorada. Pela sua experiência, é mais difícil ser lésbica ou autista na nossa sociedade?

Bom, é muito mais difícil a família aceitar a gente ser autista do que ser lésbica, o que eu acho muito estranho. Mas há a ideia de que ser autista eu não escolhi, e ser lésbica sim. Eu sou tanto autista como lésbica, são duas partes da pessoa que eu sou. Ainda tento entender o porquê disso, mas é sensivelmente mais difícil a questão de ser lésbica. Não que tenha sido fácil receber o diagnóstico de autismo, as pessoas ainda têm dificuldade de entender que certas coisas acontecem por eu ser autista. Mas o fato de eu ser lésbica é um motivo de conflito, mas pelo menos esse conflito hoje não ocorre mais comigo mesma.

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Fonte: Juliano Machado (Secom/TRT-RS), foto do arquivo pessoal de Carol Cardoso
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