EXPOSIÇÃO VIRTUAL: "Areal da Baronesa", de Magali Dantas, Tamires Kopp e Lucas Carvalho
A exposição "Areal da Baronesa" entra em cartaz nesta terça-feira (16/11) no site do TRT-RS. A mostra reúne retratos de moradores do Quilombo do Areal da Baronesa, além de um curta-metragem e um texto de apresentação. O projeto busca contribuir para a visibilidade afirmativa da comunidade, do território e da história desta região de Porto Alegre.
A concepção, a pesquisa e o texto da exposição são da cientista social Magali Dantas. As fotografias são de Tamires Kopp e o audivisual foi realizado por Lucas Carvalho. A exposição integra o Mês da Consciência Negra do TRT-RS e é promovida pelo Comitê Gestor de Equidade de Gênero Raça e Diversidade e pela Comissão de Cultura do Tribunal.
Confira abaixo o curta-metragem de Lucas Caravalho sobre o Areal da Baronesa, e, a seguir, o vídeo e o texto de apresentação de Magali Dantas.
Apresentação da exposição
"O prédio do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região está fundado sobre o aterro, que um dia pertenceu ao rio, o mesmo que viu na sua margem o nascimento do cenário que vimos retratar em apenas um recorte com esta manifestação artística...o Quilombo do Areal da Baronesa.
A ideia da exposição fotográfica brotou das minhas memórias afetivas e se transformou pela iniciativa e pelo trabalho de dois brilhantes artistas: Tamires Kopp e Lucas Carvalho.
Venham comigo ao passado...
Na enchente de 1941 meus avós maternos, na casa dos 20 anos chegaram à capital gaúcha de barco, vindos de Pelotas, sul do sul, com três filhos pequenos e sem terem onde morar. Acabaram por se acomodar nas moradias de aluguel que abrigava os brigadianos no entorno dos batalhões da Brigada Militar... Ali viveram por 18 anos, nasceram a minha mãe e seus outros 4 filhos, mas foi o bastante para que a minha avó, boa contadora de histórias, passasse a sua vida inteira, o que compreende também a minha infância, narrando sobre os personagens, as comadres, as intrigas, as parteiras, as brigas por causa das crianças e das roupas que sumiam do varal, os crimes, os adultérios, a camaradagem, as casas geminadas ou de “paredes meias” do Areal da Baronesa, o quilombo. E, apesar de ter ido poucas vezes ao Areal, estas imagens constelam o meu imaginário.
Em 2012 na minha atividade profissional ouvi pela primeira vez a expressão ‘quilombo urbano’. Tratava-se da ação envolvendo a posse de terras do Quilombo da Família Silva em Porto Alegre. Naquele trabalho de pesquisa foi que descobri o intrincado arranjo de elementos como ancestralidade negra, a territorialidade, o histórico de resistência contra a opressão legada da escravidão, que faz de uma fração de terras, onde vive uma comunidade majoritariamente negra e invariavelmente excluída, sem documentos que comprovem a propriedade das terras, um quilombo.
Mais tarde, diante do reconhecimento da condição de quilombo atribuída ao Areal da Baronesa, que mais algumas peças desse quebra-cabeça secular se encaixaram no meu entendimento.
Então, quando a idade começou a afetar a memória da minha avó (falecida aos 100 anos em 2020) me ressenti de deixar ir, sem registro, o que é também a nossa memória familiar, mas não apenas isso, era a formação dos contornos da cidade e da sociedade que estavam gravadas nos causos que ela contava.
Assim, nasceu a ideia que criou corpo diante da oportunidade impar e valiosa oferecida pela Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, ao colocar e marcha um ciclo dedicado à temática de direitos humanos. O ano era 2016 e nunca imaginaríamos o quanto esse debate se tornaria vital para a sociedade como um todo, vide os desdobramentos políticos desde então que ameaçam constantemente os direitos humanos e sociais.
No momento em que surge a oportunidade de uma nova exposição, agora no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, avaliamos que novas cores irradiam dos nossos retratos em branco e preto: salvaguardar a memória dos povos originários é lutar, também, pelos direitos e garantias fundamentais de todas as pessoas.
Beco sem saída no limite entre Menino Deus, Praia de Belas e Cidade Baixa, bairro tão tradicional e querido que teve sua origem exatamente no Areal da Baronesa, hoje quilombo.
A denominação Cidade Baixa deve-se ao fato de que o Centro de Porto Alegre, no início de sua formação da cidade, correspondia à Cidade Alta. No Centro morava boa parte da elite econômica e política da capital gaúcha até a primeira metade do século XX. Na descida da colina onde está hoje a avenida Borges de Medeiros moravam, em geral, as camadas mais humildes da população, inclusive os escravizados e seus descendentes.
No século 19, o bairro era conhecido como Arraial da Baronesa, por fazer parte da vasta extensão de terras da Baronesa de Gravataí, cuja residência principal localizava-se onde hoje funciona a Fundação Pão dos Pobres. Outras propriedades rurais – que utilizavam mão de obra escravizada – também faziam parte da região.
Com o tempo, as chácaras foram dissolvidas em terrenos e vendidas principalmente para negros e negras libertos e imigrantes italianos.
Mesmo quem nunca pisou no Areal da Baronesa, conhece o apelo boêmio da Cidade Baixa, talvez sem saber que a Ilhota contígua ao Areal, a vila onde Lupicínio Rodrigues nasceu e morou até perto dos 35 anos pode ser considerada o centro de um roteiro pobre e negro da cidade, o lado B de uma Porto Alegre de intensa vida notívaga e musical desde os anos 1920. Contudo, o discurso oficial veiculado pelas instituições e imprensa, não deixavam dúvida de que havia lugares de exclusão ou “enclave” na expressão da historiadora Sandra Jatahy Pesavento. Emboscadas, cortiços, becos, avenidas vinculados sempre à periculosidade, ao risco sanitário e mesmo à moral das elites da cidade.
Ainda, no esporte de Porto Alegre, quem diria, o Areal compõe as origens:
Na cidade, entre 1903 a 1908, existiam dois clubes: o Fussball Club Porto Alegre e o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, ambos privativos atletas de ascendência germânica. O esporte, ainda novo no país, era elitista e não admitia a participação de negros (à época, apenas homens) em seus times. Em 1909, foi fundado o Sport Club Internacional com a ideia de que “todos” poderiam jogar. Entretanto, foi só na década de 20 que negros começaram a fazer parte da grande liga da Capital. Justamente num campo herdado do Sport Clube Internacional que não foi utilizado justamente em função das constantes inundações da Ilhota (quando o Arroio Dilúvio não era canalizado) foi que se baseou a Liga Nacional de Futebol Porto-Alegrense, popularmente denominada de Liga da Canela Preta, destinada aos clubes de atletas das classes menos favorecidas e inevitavelmente, os atletas negros. De um desses times, o Ferroviário, foi que se revelou o craque Tesourinha, que dá nome ao ginásio municipal situado exatamente onde ficava a Ilhota.
O Areal era e é um reduto totalmente carnavalesco, a partir dos anos 30 já existem noticias em jornais de grupos com nomes de ''Ases do Samba'', ''Nós os Comandos'', ''Seresteiros do Luar'', ''Nós os Democratas'', ''Viemos de Madureira'', ''Tô com a vela'', ''Os Caetés'' e mais recentemente, os ''Imperadores do Samba'', todos tiveram origem no Areal. Foi onde surgiu o Rei Negro (Seu Lelé), primeiro Rei Momo Negro da cidade, e os primeiros coretos populares de bairro.
De volta ao presente, até 2020 o Bloco da Lage, formado em outro local da cidade promove um resgate da tradição que emerge, a despeito da invisibilidade e negação que deslocou o carnaval oficial de Porto Alegre para as franjas da cidade. O bloco rende tributo ao patrimônio cultural quando arrasta os seus cortejos com milhares de foliões entre a Colônia Africana (Rio Branco) e o Areal, na Rua ou “avenida” Luiz Guaranha. Logradouro que leva o nome do artesão que produzia sapatos sob encomenda para os nobres que vinham assistir a espetáculos no Teatro São Pedro, e onde está o casario onde habitam as 80 famílias quilombolas.
O quilombo urbano tem a sua própria escola de samba o Areal do Futuro, rostos pueris magicamente retratados na exposição.
Até meados da década de 1970. a “Baronesa” foi reduto da maioria dos terreiros de religiões afro-brasileiras (batuque ou nação, umbanda e quimbanda) os relatos de antigos moradores e frequentadores é de que, dos batuqueiros tradicionais de Porto Alegre, a maioria teve a “cabeça lavada” no Areal. A gentrificação do centro da cidade deslocou habitantes e terreiros para os bairros Lomba do Pinheiro, Restinga, como o alabê e ativista negro Walter Calixto Ferreira – mestre Borel-, Partenon ou para a região metropolitana. Outros como a Mãe Ieda de Ogum permanecem nas imediações até o presente.
Atualmente, o Areal da Baronesa é reconhecido como uma porção histórica de Porto Alegre, e é onde está situado o Largo Zumbi dos Palmares, homenageando o personagem histórico num dos pontos de referência de um bairro de ocupação tradicionalmente negra. Um espaço de resistência da comunidade negra, que também contribui para a preservação do patrimônio e da história da cidade.
Os retratos de Tamires Kopp dão rosto ao território invisível do Quilombo do Areal, histórias, vidas e expectativas reais fincadas no chão que lhes pertence. Nesga de terra devorada pelas paredes espelhadas que consomem sem partilhar nem o pôr do sol, que se crê, liricamente, que seria para todos. Donos da terra interpretados socialmente como posseiros indesejáveis em suas ruas de lama, peles escuras e subsistência na subalternidade. Desenhar seus rostos com a luz e revelar a essência do povo remanescente é um serviço prestado à autoestima da cidade de Porto Alegre. É dar a ela olhos para ver a si mesma e reconhecer-se inteira pelas lentes da fotografia.
O curta-metragem realizado por Lucas Carvalho especialmente para a exposição é uma peça surpreendente do diálogo do território com o seu sagrado, sua negritude e seu engajamento que pulsa nas entranhas da pequena rua sem saída. A batida do atabaque e a invocação aos orixás que retumbam em qualquer corpo que a eles testemunhem, pois a nossa existência e tradição têm o ritmo da diáspora que cruzou o Atlântico, melodia que não se pode esquecer. O tempo vai sempre nos lembrar."
(Magali Dantas)
Sobre os autores
Tamires Kopp é fotógrafo, produtor e diretor, natural de Porto Alegre. Autodidata e com larga experiência em registro fotográfico de movimentos sociais e comunidades tradicionais rurais e urbanas, inclusive, projetos institucionais do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Ministério do Desenvolvimento Social entre 2003 e 2014. Vencedor de três Prêmios Abril de Jornalismo – categorias Educação em 2007, Carreira e Trabalho e Foto Produzida em 2010. Diretor de produção do curta-metragem “Cadernos de Guerra” – 2013. Produtor executivo do documentário “Arrieros” – 2012. Em 2015, teve um acidente que deixou sequelas de marcha, precisando de muletas, acabou se afastando da fotografia.
Lucas Carvalho é graduado em Administração, acadêmico de Teoria Crítica História da Arte, professor, natural de Parnaíba-PI, vive em Brasília e já obteve em 2015 o prêmio no Concurso de Fotografia “ Brasília, Um Outro Olhar” promovido no Instagram com curadoria e produção da BSB Memo.
Magali Dantas é graduada em Ciências Sociais, mestra em Desenvolvimento e Governança, natural de Porto Alegre, servidora da Justiça Federal do RS desde 1997 onde é membra do Grupo de Trabalho Direitos Humanos, Equidade de Gênero, Raça e Diversidades. Radicada em Brasília é também filha e neta de antigos moradores do Areal da Baronesa.