Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo: ainda temos muita luta pela frente!
Texto de autoria da juíza do Trabalho Gabriela Lenz de Lacerda, integrante da Comissão de Direitos Humanos do TRT-RS
Em 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel sancionou a lei que formalmente aboliu a escravidão no Brasil. A última lei abolicionista publicada na América Latina, além de tardia, se limitou a garantir a liberdade formal dos escravos, mas não teve qualquer preocupação com o fornecimento de condições dignas à sua sobrevivência. Originou, assim, uma desigualdade histórica com efeitos nefastos que recaem sobre os descendentes de índios e negros até hoje.
Lamentavelmente, para muito além do abismo social gerado pelo nosso passado escravocrata, o trabalho em condições análogas às de escravo ainda é uma realidade no Brasil.
As formas de escravidão contemporânea talvez guardem diferenças, sob alguns aspectos, com àquela abolida pela Lei Áurea. Assemelham-se, contudo, pelo que há de mais essencial: coisificam a pessoa humana, violando a sua dignidade e seus direitos mais fundamentais.
Escravidão contemporânea é, nos termos do artigo 149 do Código Penal, a redução de “alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
Os trabalhadores vítimas desta condição geralmente são migrantes das regiões centro-oeste, norte e nordeste ou imigrantes de países latino-americanos – como Bolívia, Paraguai e Peru – que deixam suas casas em busca de melhores condições de vida. São atraídos por promessas de bons empregos em regiões agrícolas ou mesmo em centros urbanos, especialmente na construção civil e na confecção têxtil. Dados do programa seguro-desemprego indicam, ainda, que 72,1% dos trabalhadores libertos entre 2003 e 2014 são analfabetos ou não concluíram o quinto ano do ensino fundamental.
Infelizmente, diversos são os movimentos políticos e as interpretações judiciais tendentes a restringir o alcance da norma penal. Em uma completa inversão de valores, nosso sistema penal ainda se preocupa mais intensamente com a proteção de bens materiais, não raro criminalizando inclusive furtos de bagatela, do que com o bem maior tutelado na nossa Constituição que é a dignidade da pessoa humana.
Atualmente aguarda votação o PLS 432/2013, de autoria do Senador Romero Jucá, que regulamenta a EC 81/2014 (antiga PEC do trabalho escravo) ao prever o confisco de propriedades em que praticado este crime. O mesmo projeto desconfigura, contudo, grande parte artigo 149 do Código Penal ao retirar do conceito de escravidão contemporânea a submissão do trabalhador a condições degradantes e a jornadas exaustivas. Além deste projeto, existem outros três que tramitam no Congresso com a finalidade de reduzir os elementos que caracterizam o tipo penal da escravidão, em que pesem as orientações em sentido contrário da Organização das Nações Unidas.
Não por acaso o Brasil foi condenado, no final de 2016, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão jurisdicional da OEA, por violação ao direito de não ser submetido à escravidão e ao tráfico de pessoas. A decisão é referente a um resgate de 85 trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, no Pará, em 2000. Os relatórios do Ministério do Trabalho apontam que os empregados foram aliciados por um “gato”, tiveram suas Carteiras de Trabalho confiscadas e trabalhavam 12 horas ou mais, com 30 minutos de descanso. Dormiam em redes colocadas em galpões, sem energia elétrica, camas ou armários, recebendo alimentação de má-qualidade e trabalhando sob ordens, ameaças e vigilância armada. Segundo decisão da Corte, os procedimentos legais existentes no ordenamento jurídico brasileiro não serviram para atribuir qualquer tipo de responsabilidade ou para garantir às vítimas a reparação necessária, pelo que houve a condenação a diversas medidas reparatórias, como reiniciar as investigações sobre o caso, adotar medidas para garantir que a prescrição não seja aplicada ao delito de direito internacional de escravidão e suas formas análogas e pagar as indenizações correspondentes aos trabalhadores.
Vale ressaltar que este não é um caso isolado, em que pese o esforço hercúleo dos auditores fiscais do trabalho para manter as fiscalizações a despeito da carência de pessoal. Atualmente existem cerca de mil cargos vagos de auditor fiscal do trabalho de um quadro – já insuficiente - de 3.644 cargos e, não bastasse a dificuldade estrutural, diversas têm sido as tentativas de inviabilizar a atuação deste importante braço do poder executivo. Está em tramitação no Congresso Nacional, por exemplo, o Projeto do Código Comercial (nº 1572/2011) que prevê a necessidade dos auditores fiscais avisarem a empresa com dois dias de antecedência para as fiscalizações e de somente apurarem denúncias com autorização judicial – requisitos que obviamente inviabilizariam as ações de combate ao trabalho escravo.
Tais medidas vem na contramão das necessidades sociais, especialmente porque o Brasil é um país de proporções continentais e muito se engana quem imagina que a escravidão é exclusividade das regiões norte e nordeste. Em agosto de 2016, quinze empregados foram flagrados dentro de uma cela em um caminhão na cidade de Lajeado – RS. Eram vendedores ambulantes trazidos da Paraíba que, sem condições financeiras de retornar ao seu estado de origem, foram vítimas de punições e ameaças psicológicas, especialmente quando não atingiam as metas de vendas. Este é apenas um de muitos outros casos já constatados no Estado.
A escravidão é, assim, um grave problema da nossa atualidade e que, em tempos de crise econômica, tende a piorar. Cada vez que se debate a precarização das relações de trabalho, o Brasil consente com a ampliação destes números já bastante altos.
A imensa maioria dos casos de trabalho escravo e infantil nos centros urbanos é de trabalhadores terceirizados que prestam serviços a grandes marcas, como Zara, M. Officer, Le Lis Blanc, Renner, dentre outras. Os ramos calçadistas e confecções, além da construção civil, são os mais comuns. Por isso quem acompanha de perto a realidade dos trabalhadores terceirizados no Brasil sabe a gravidade que representa a terceirização irrestrita, na forma do PL 4.330, atualmente em votação no Senado Federal.
A solução para a problemática do trabalho escravo contemporâneo depende de uma ação integrada dos poderes públicos e do apoio social. Precisamos resistir contra os retrocessos legislativos, munir o poder executivo de estrutura suficiente à prática fiscalizatória e punir judicialmente o descumprimento das leis.
Nos cabe também aproveitar este 28 de janeiro, dia nacional do combate à escravidão, para uma reflexão necessária sobre os nossos valores sociais, que admitem a coisificação do ser humano vítima da escravidão para propiciar a manutenção de uma economia amparada no consumo irresponsável. Lembremos do ensinamento do já saudoso sociólogo polonês Zygmunt Bauman de que “todos os outros valores só são valores na medida em que sirvam à dignidade humana e promovam a sua causa. Todas as coisas valorosas da vida humana nada mais são que diferentes fichas para aquisição do único valor que torna a vida digna de ser vivida. Aquele que busca a sobrevivência assassinando a humanidade de outros seres humanos sobrevive à morte de sua própria humanidade”. A dor de um único ser humano justifica a união de todos em prol da revisão do sistema. Vamos então unir esforços e lutar juntos pela erradicação do trabalho escravo contemporâneo!