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Publicada em: 21/03/2017 00:00. Atualizada em: 21/03/2017 00:00.

ESPECIAL - Mulheres negras: ''A discriminação é o nosso dia a dia''

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Para marcar o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, celebrado neste 21 de março, e aproveitando que este também é o mês da mulher, o TRT-RS destaca a associação dessa forma de preconceito com a discriminação por motivo de gênero, combinação que coloca a mulher negra em uma das posições mais vulneráveis da sociedade.

 

Em 1972, John Lennon lançava a canção “Woman is the nigger of the world” (a mulher é o negro do mundo, em tradução livre), em que denuncia o papel desprezível relegado à mulher pela sociedade machista. O título da música é muito provavelmente inspirado em um trecho do romance “Their Eyes Were Watching God”, publicado em 1937 pela escritora estadunidense Zora Neale Hurston. Em uma passagem da trama, a avó da protagonista apresenta sua reflexão a respeito da posição de mulheres negras. “Querida, [...] o homem branco joga a carga no chão e manda o homem negro recolher. Ele recolhe porque é o que tem que fazer, mas ele não carrega. Ele alcança a carga para as mulheres. A mulher negra é a mula do mundo”.

Cada um ao seu modo, esses artistas expõem suas visões sobre a nefasta intersecção entre as discriminações de raça e de gênero. Para marcar o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial (21 de março), o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região – no âmbito da sua Política de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade,  escolheu destacar como a combinação dessas duas características faz com que as mulheres negras talvez representem um dos grupos mais oprimidos pela cultura vigente.

A professora de história da Uniritter e coordenadora do grupo de trabalho Emancipações e Pós-Abolição, da Associação Nacional de História/RS, Fernanda Oliveira, explica que a opressão contra a mulher negra é um processo histórico, mas só recentemente se começou a entender que a combinação dos fatores agrava sua condição. “A mulher negra sempre ocupou a parte mais baixa de qualquer organização. Ela sofre discriminações de diversas naturezas, justamente por ser mulher e negra. Nos movimentos sociais, a gente diz que nossos passos vêm de longe. Mas só por volta dos anos 2000 é que se cunha essa terminologia da interseccionalidade. A partir daí, passou-se a sustentar que é preciso observar como a combinação das discriminações de raça e de gênero contribuem ainda mais para a perpetuação da discriminação. Hoje, as pessoas já compreendem que não é possível entender qualquer tipo de discriminação sem considerar a intersecção com a raça. O movimento LGBT, por exemplo, já percebeu que é diferente a pessoa ser lésbica e ser uma lésbica negra, ser uma mulher trans e ser uma mulher trans negra. Ser negro acompanha essas pessoas, isso não pode ser separado” analisa.

Para quem sente o preconceito na pele, o lugar que a sociedade reserva para as mulheres negras é uma realidade da qual é difícil de escapar. “A discriminação é nosso dia a dia. A gente sente quando entra no elevador do TRT e a pessoa que já estava dentro se retira; sente no jeito como olham para nós. A gente sofre com o preconceito o tempo todo”, lamenta Paulina Rosa da Silva, 59 anos, trabalhadora terceirizada no TRT-RS. Paulina chega a ter dificuldade em destacar um fato para ilustrar o preconceito que sofre, diz já estar acostumada. Cita alguns casos, como a vez que entrou em uma loja para comprar material para reformar a casa, e o vendedor fez questão de mostrar os revestimentos de piso mais caros, para logo em seguida dizer que achava que ela não teria dinheiro para pagar. Conta, ainda, outras situações e conclui: “se vou em algum lugar e não tem ninguém da nossa cor, eu procuro nem ficar”.

O lugar na sociedade ocupado pelas mulheres negras não é somente algo a que se tem conhecimento por meio da percepção de quem está lá ou de almas mais sensíveis como as dos artistas. Uma rápida busca na internet em que se conjuguem as palavras “mulheres”, “negras”, “dados” e “discriminação” revela que as pesquisas confirmam a dificuldade de se encontrar um grupo mais prejudicado pela estrutura social do que as mulheres negras. Não importa qual a fonte (Dieese, IBGE, Ipea...), os resultados são sempre os mesmos em essência e apontam para a existência de uma hierarquia social que coloca os homens brancos no topo, seguidos por mulheres brancas, homens negros e mulheres negras. A mulher negra é a base desta pirâmide.

Tomando-se por critério, por exemplo, o tema salário e emprego, os números demonstram que:

 

  • o salário médio da trabalhadora negra é a metade do salário da trabalhadora branca;
  • a trabalhadora negra é aquela que se insere mais cedo e a última a sair do mercado de trabalho;
  • mesmo quando sua escolaridade é similar à escolaridade da companheira branca, a diferença salarial gira em torno de 40% a mais para a branca;
  • a taxa de desemprego das jovens negras chega a 25% (uma entre quatro jovens está desempregada). A taxa entre a brancas é de 10% (uma em cada dez);
  • 71% das mulheres negras estão em ocupações precárias e informais; contra 54% das mulheres brancas e 48% dos homens brancos.

 

Esses dados somente atestam uma circunstância facilmente observável a olho nu. É uma realidade que, inclusive, muitos esperam encontrar. Aqui, o verbo “esperar” é empregado tanto no sentido do que se presume como garantido, quanto no sentido do que se deseja – como é o caso dos que agem para reforçar esses estigmas. A servidora Milena de Oliveira, assistente de gabinete da desembargadora Cleusa Halfen, é uma das 136 pessoas negras e pardas do quadro do TRT-RS, grupo que hoje representa apenas 4% do total de servidores. Ela conta dois episódios em que o fato de ser uma mulher negra fez com que pessoas se sentissem confortáveis para adivinhar quais atividades desempenhava no Tribunal; claro que em nenhuma das vezes o prognóstico lhe foi favorável. “Na época eu tinha começado a trabalhar no gabinete do desembargador Rossal. Uma moça da limpeza me perguntou – tua orelha não ficou fervendo ontem? Passei falando de ti para minha filha; que tinha entrado uma estagiária no Tribunal com um cabelo afro lindo! – Eu agradeci e a incentivei, falei para ela que dissesse à filha que sim, isso era possível, mas no fundo lamentei porque na visão dela, por ser negra eu só podia ser uma estagiária, não uma servidora”, constata Milena.

Em outro caso, o prejulgamento veio de parte de outro servidor. “Estava fumando e um colega me perguntou – e tu, moreninha, onde é que tu trabalha? – já comecei dizendo que meu nome não era moreninha e, sim, Milena. Ele insistiu e quis saber onde eu trabalhava, ao que respondi que no gabinete da Drª Ângela. E ele – Ah, pensei que tu fosse terceirizada...”, relata Milena, lamentando ainda o fato de que ao reproduzir a cena para outros colegas, a maioria minimizou, aconselhando-a que relevasse, pois esse era só o jeito do colega.

Mas a subjugação da mulher negra não se restringe, obviamente, ao mundo do trabalho. Se o tema é violação de direitos humanos, as estatísticas são ainda mais alarmantes. Mulheres negras também aparecem como a maioria das vítimas quando são avaliados os mais diversos indicadores.

 

  • 58,86% das mulheres vítimas de violência doméstica são negras;
  • 53,6% das vítimas de mortalidade materna são negras ;
  • 65,9% das vítimas de violência obstétrica são negras;
  • Mulheres negras têm duas vezes mais chances de serem assassinadas que as brancas, sendo que entre 2003 e 2013, houve uma queda de 9,8% no total de homicídios de mulheres brancas, enquanto os homicídios de negras aumentaram 54,2%;
  • 56,8% das vítimas de estupros registrados no Estado do RJ em 2014 são negras.

 

Fernanda enxerga o problema como uma questão estrutural que depende de políticas públicas para ser enfrentada. Algumas iniciativas vêm sendo tomadas, mas é preciso ajustar o foco para se atingir o objetivo. “É óbvio que existe discriminação de gênero. Também é óbvio que existe a discriminação de raça. E as mulheres negras acabam ocupando a posição de maior suscetibilidade. Então é urgente que a política de instituição de cotas atinja especificamente as mulheres negras. Porque mesmo quando existe uma regra que cobre as duas situações, como é o caso dos partidos políticos, por exemplo, que possuem cotas para negros e para mulheres, elas são separadas, e ocorre que as cotas para negros são ocupadas por homens e a cota para mulheres é ocupada por mulheres brancas”, pondera.

A instituição de cotas específicas para as mulheres negras é vista por Fernanda como uma possibilidade de restruturação ampla do tecido social. “Seria uma forma de combater até mesmo outras situações que estão intimamente relacionadas com o problema da mulher negra, mesmo que aparentemente sejam questões distintas, com é o caso do genocídio da juventude negra. A situação de vulnerabilidade dessa população que vem sendo morta também é resultado da vivência da mulher negra, que é colocada no lugar mais baixo da estrutura da sociedade, e muitas vezes tem que criar seus filhos sozinha, sobrevivendo de um subemprego. Então, essa e outras questões só serão resolvidas quando a gente efetivamente olhar para a mulher negra, porque é ela que está na base”, argumenta.

No entanto, apesar de reconhecer que há muitos obstáculos a serem enfrentados, Fernanda se diz otimista e percebe que a sociedade caminha na direção certa. “A gente está vivendo um momento propício para essas discussões. Vem num crescente de cotas nas instituições, especialmente na educação, que faz com que essa reflexão atinja a própria estrutura dessas organizações. Esses espaços se tonam cada vez mais plurais, e o contato com o diferente é o que vai realmente promover a transformação; não é só o outro falando, não são só os números, é uma experiência de vida de fato”, comemora.

Na esteira dessas transformações, Fernanda exalta o momento vivido pelos movimentos sociais e comemora a mudança de alguns paradigmas, como a própria ocupação de lugares mais privilegiados dentro desses grupos pelas mulheres negras. “A mulher negra vem em um processo de apoderamento, se apropriando de espaços e conceitos. Frases como 'a mulher é o negro do mundo' ou 'a mulher negra é a mula do mundo' vêm sendo substituídas por 'a mulher negra vai ser a protagonista da grande revolução' ”, conclui.

O crescimento desses movimentos é facilmente confirmado ao se pesquisar sobre o tema na internet. Tanto quanto os dados que expõem a mazela da discriminação contra a mulher negra, multiplicam-se as páginas de coletivos formados em torno do objetivo comum de lutar por seus direitos, tornando possível a interpretação de que alguns valores já estão sendo transformados, e não vivemos mais em um mundo em que uma canção como “Woman is the nigger of the world” cause tanta controvérsia quanto causou ao ser lançada e chegasse ao ponto de ter sido alvo de boicote por parte de emissoras de rádio e televisão estadunidenses. A música chegou a alcançar a 57ª posição nas paradas de sucesso dos Estados Unidos, a pior colocação de uma canção de John Lennon em toda a sua carreira.

O TRT-RS e a política de equidade

O TRT-RS lançou no início do mês de março a sua Política de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade. Aprovada pelo Órgão Especial do TRT-RS e publicada em 21 de fevereiro, a Resolução Administrativa nº 03/2017 foi instituída com o objetivo de afirmar o compromisso contínuo da Instituição com a busca da promoção da equidade de gênero, raça, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, geracional e de pessoas com deficiência, bem como das demais dimensões de diversidade nas relações sociais e de trabalho no âmbito da Justiça Trabalhista da 4ª Região. Estão previstas ações de comunicação, capacitação, cultura e eventos institucionais relacionados ao tema, além de iniciativas de promoção de saúde e qualidade de vida.

Outra finalidade da política é assegurar a igualdade de oportunidades e a equidade na ascensão funcional e nas funções gerenciais do TRT-RS, promovendo equilíbrio na disputa das vagas internas. Em relação ao acesso ao serviço público, por exemplo, o TRT-RS foi um dos primeiros órgãos do Judiciário brasileiro a estabelecer cotas de 20% para candidatos negros nos concursos para juiz e servidor, no ano de 2015. Em março do ano passado, o Tribunal também lançou o Projeto de Igualdade de Gênero, que promoveu diversas ações de conscientização e informação sobre a desigualdade entre homens e mulheres na sociedade e a respeito da violência contra a mulher.

A Política também estabelece a eleição de um Comitê Gestor de Gênero, Raça e Diversidade. O grupo, de caráter multidisciplinar, será responsável por propor, promover e realizar ações, eventos e projetos relacionados à política, além de subsidiar as áreas administrativas e judiciárias no encaminhamento de propostas com igual finalidade.

ACESSE AQUI a íntegra da Política de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do TRT-RS.

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Fonte: Erico Ramos (Secom TRT4)
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