ENTREVISTA: “Venho da época da invisibilidade, mas as instituições estão mudando”, diz a servidora Renata Covalski Geraldo, representante das pessoas com deficiência no TRT-RS

“Quando eu vejo um coleguinha abraçando meu filho, chamando ele para brincar, eu me emociono. Eu não tive isso de forma saudável. As crianças riam e viviam me agredindo.
Só fui entender que eu era diferente quando eu fui para o jardim, saí do meu universo, pois, em casa, meus pais me tratavam normalmente.
A gente passa uma vida inteira sendo estigmatizada. Eu tenho trauma de infância.”
O relato é de Renata Covalski Geraldo, servidora lotada no gabinete do desembargador Marcelo Ferlin D’Ambroso.
Renata, 38 anos, nasceu com microssomia craniofacial de grau severo e microtia. A microssomia impede o crescimento da face e a microtia é uma malformação da orelha externa (a parte que vemos). Os problemas ocasionaram a perda da audição.
Natural de Jaguarão, no Sul do estado, ela veio para Porto Alegre para ter acesso aos melhores tratamentos.
Entre 1994 e 2012, foram feitas mais de 30 cirurgias para a reconstrução total da face, com a inserção de mais de 60 parafusos. As técnicas utilizavam estruturas ósseas de outras partes do corpo para os procedimentos, como também foram utilizados enxertos de pele, músculo e de placas.
“Naquela época não era como atualmente. Hoje, em um bebê de um mês, já é possível fazer cirurgia. Na década de 90 era necessário esperar até sete ou oito anos de idade, devido ao risco”, diz Renata.
Um ano antes de ingressar no TRT-4, em 2012, ela passou pela última cirurgia. Foram seis meses de internação, após complicações causadas por uma bactéria pulmonar, que provocou sequelas. Todos os progressos conquistados até aquele momento foram comprometidos. “Inclusive tive que reaprender a caminhar”, conta.
Em 2013, ela tomou posse como técnica judiciária.
“Para mim, entrar no Tribunal foi como um presente. Foi como encerrar aquele ciclo da internação e começar uma vida nova”, relembra.
O ingresso no TRT-4 foi na 3ª Vara de Porto Alegre. Depois, ela teve uma passagem pela 20ª VT e na sequência foi para o segundo grau, onde tem atuado desde 2020.

Mãe de Bento, que fará dois anos em outubro, e esposa de Augusto, Renata é moradora de Novo Hamburgo. Ela tem formação em Filosofia, Ciências Contábeis e Direito, além de duas pós-graduações.
Ao contar sobre a rotina, a busca por direitos e as conquistas das pessoas com deficiência, Renata enfatiza: “não podemos falar de anticapacitismo só no mês de setembro!”
O Setembro Verde, como é conhecido, é marcado neste sábado (21) pelo Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência, uma luta por inclusão e contra o capacitismo.
Presente de forma estrutural na sociedade brasileira, o capacitismo é o movimento de preconceito, discriminação e violência, baseado em estereótipos equivocados e ultrapassados de que as pessoas com deficiência são incapazes, inferiores e não têm nada a oferecer para a evolução social.
Informações de 2022, indicam que 18,6 milhões de pessoas no Brasil, com dois anos ou mais de idade, possuíam alguma forma de deficiência, representando 8,9% da população. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).
Para tornar mais efetivos esses direitos e melhorar a vida das PcDs no Tribunal, a servidora participa, desde março, do Comitê de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do TRT-RS.
Conheça um pouco da colega na entrevista a seguir:
Você percebe alguma diferença no tratamento das pessoas com deficiência?
Existe o preconceito.
Tem aquela questão, que é um desrespeito: as pessoas perguntam ‘Qual é a tua deficiência?’ e até duvidam de que ela exista, porque entendem que a pessoa com deficiência não pode ter uma vida normal. Elas pegam um pequeno recorte e acham que sabem tudo da vida da pessoa.
Mas, ao mesmo tempo, há as agressões diárias que podem ocorrer em qualquer lugar, desde mandar falar mais baixo ou dizer que não respondi ao bom dia. Como se eu fizesse por má educação.
Não entendem, por exemplo, a minha dificuldade para entender certas palavras e números, principalmente. Por mais que eu seja oralizada, tem isso também de palavras que eu não compreendo.
É uma agressão para a gente.
A gente passa a vida toda sendo estigmatizado, sofrendo preconceito. Eu sou da época em que não existia o termo bullying, as pessoas eram mal educadas mesmo.
Hoje é possível falar em mudanças? A sociedade é mais acessível e inclusiva, por exemplo?
Desde 2006, com a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência aprovada pela ONU e recepcionada como norma constitucional pelo Brasil, em 2008, a situação vem melhorando.
Quando eu estava terminando o curso de Filosofia, passei no meu primeiro concurso público. Tenho quase 20 anos como servidora.
Eu acompanhei toda a questão da melhoria das políticas para pessoas com deficiência. Aconteceu muita evolução, pois lá no início, a sensação era a de que estávamos ali só para cumprirmos a cota. “Vamos nomear PcD porque a gente precisa”.
Quando eu entrei no TRT, senti uma diferença. Fui muito bem recebida, era um clima muito familiar.
A juíza da época, já aposentada, Rosemarie Teixeira Siegmann, me cumprimentou, abraçou. A Regiane França era a diretora, muito querida por todos. O juiz que me ensinou a fazer sentença foi o Alcides Otto Finklerbusch e eu tinha auxílio do Cristiano Fraga, que voltou para o TRT-RS agora, em julho, como juiz. Guardo com carinho tudo o que aconteceu naquele período.
As instituições estão mudando, não é mais aquela coisa do ir lá, receber o salário e deu. Eu venho da época da invisibilidade, mas hoje a situação legal e comportamental, por exemplo, já está mudando. Há o interesse no diálogo.
Isso eu falo até no livro que vai ser lançado pelo TST.
Eu passei pelas quatro etapas de inclusão da pessoa com deficiência, desde a infância.
Que etapas são essas?
Exclusão - por ser diferente do padrão imposto pela sociedade, a pessoa com deficiência é perseguida, humilhada e isolada das demais pessoas. É bem forte na infância e na adolescência.
Segregação - você tem acesso a uma política social mínima, como uma vaga de emprego (o meu primeiro emprego), mas você é isolado dos demais. A vaga é vista como uma caridade.
Integração - a pessoa com deficiência tem o entendimento de que para viver pacificamente, seja na sociedade ou no ambiente laboral, precisa se adaptar ao que é oferecido. Assim, tenta esconder alguma ou outra limitação do cotidiano para que não seja ignorada ou tratada como pessoa incapaz. Ela entende que ao tentar se adaptar ao ambiente, terá a chance de ter as mesmas oportunidades ofertadas aos demais.
Inclusão - a pessoa com deficiência já convive em sociedade de forma respeitosa, igualitária e de maneira digna. Nessa fase há mais acesso a direitos e oportunidades e, ao mesmo tempo, as instituições e a sociedade querem acolher a diversidade (os minorizados).
Nessa fase se inclui, por exemplo, a criação de Comitês específicos pelas instituições. Há a consciência de que é necessário que o Judiciário tenha mais pessoas com deficiência como magistrados ou magistradas, como também é a fase em que as instituições buscam ouvir a pessoa com deficiência e saber de suas necessidades, e o que pode ser melhorado nas condições de trabalho e relações interpessoais.
Eu vivi as três primeiras fases. Aliás, vivo de forma contínua (é uma luta diária), mas fico feliz em saber que a quarta fase está acontecendo e estou podendo participar dela.

Você pode falar sobre o livro do TST?
Sim, o livro é o “Tudo sobre nós, por nós”. O lançamento será agora no próximo dia 24 de setembro.
O projeto foi lançado em abril pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho.
Desembargadores, juízes e servidores foram entrevistados. Do total de 36, 10 são do TRT-RS. Eu estarei presente no lançamento, em Brasília.
O nosso judiciário está muito voltado à aplicação da Agenda 2030 da ONU. Para termos um mundo mais sustentável, temos que respeitar as diferenças.
E sobre a sua atuação no Comitê, como acontece?
Eu sempre achei que as minhas lutas eram sozinha. Minha atuação mais concreta, começou no ano passado, com o coletivo de PcD aprovado no concurso para analista do TST.
A partir da nossa atuação, conseguimos garantir uma ampliação das vagas para servidores e magistrados com deficiência. O que antes era de 5%, agora poderá ser de 10%. Em agosto, o TST e o CSJT publicaram o atoAbre em nova aba que trata das vagas/nomeações de negros, indígenas e PcD.
A partir desse coletivo dos aprovados, veio o convite para o trabalho no Comitê.
Eu me candidatei, fui eleita e assumi em março.
Tem sido um trabalho de muita escuta.
Eu escuto sugestões e alertas de colegas e vou repassando aos setores específicos do tribunal. Muitas vezes as demandas já estavam sendo pensadas de forma efetiva.
Um exemplo é a questão de legendagem das audiências.
Também converso muito com colegas. E gosto quando há iniciativa da parte deles.
Tintim nasceu sem a bacia, tem as pernas
traseiras curtas, e Pitufo é monocular
Alguma vez, em função da deficiência, você já se viu na obrigação de fazer alguma coisa para provar suas capacidades às outras pessoas?
A gente sabe que toda pessoa com deficiência acaba tendo que provar algo.
Eu já escutei uma pessoa dizer que, mesmo tendo vaga no local, não queria uma pessoa com deficiência porque elas dão mais trabalho.
Eu acho essa visão preconceituosa, porque tentamos fazer o nosso trabalho da melhor forma possível para que não fiquem dizendo que não deu certo por causa da deficiência. Eu conheço colegas que se desgastam trabalhando para que não haja motivos para crítica. Isso é trauma, porque a gente é apontado desde pequenininho.
Como tornar a luta pelos direitos das pessoas com deficiência uma questão que interesse a todos?
Eu penso que nós sempre temos que fazer a autocrítica. Eu levo em consideração a limitação da outra pessoa? Qualquer pessoa tem que estar atenta.
Em casa, por exemplo, o meu marido já sabe que ele vai ter que falar números, um por um, e que eu não escuto o nosso filho chorando no outro cômodo ou quando estou dirigindo.
Eu também acredito que, às vezes, a pessoa comete o capacitismo sem querer.
E também tem o caso das pessoas com deficiência que não querem se engajar, querem que passe despercebido, que ninguém note as limitações. Cada um tem uma história que pode ser de dor e de solidão. Não querer levantar a bandeira também é um direito.
O que você ainda considera como mais difícil?
A gente sabe que nenhum direito fundamental pode retroceder. Tudo o que foi conquistado no Estado de Direito tem que permanecer.
Mas fica aquele receio de que algo possa ser retirado. Eu tenho esse receio.