Artigo: 'Características do Trabalho Escravo Contemporâneo - 2ª Parte', por Marcelo José Ferlin D'Ambroso, procurador do Trabalho da 12ª Região
Marcelo José Ferlin D’Ambroso, procurador do Trabalho da 12ª Região
Em seguimento ao artigo publicado no último domingo, em que tratamos sobre o que é trabalho escravo, na atualidade, outros fatores também podem identificar essa conduta:
- controle físico (impossibilidade material de condições de saída do local, por ausência de transporte, local inóspito, proibição, vigilância, etc.) e psicológico (engodo, artifício, argumento moral, concernente à servidão por dívida ou simples promessa de paga que nunca acontece ou de forma irrisória);
- ausência de remuneração (ou mínima);
- violência física;
- exploração econômica pelo empregador ou por terceiros (truck-system ou “barracão” – venda de gêneros alimentícios e de primeira necessidade, ferramentas, etc., ao trabalhador);
- aliciamento: recrutamento “voluntário” de pessoas em condições de vulnerabilidade ou ludibriadas mediante deslocamento geográfico (potencializa a fragilização da vítima);
- falta de água potável: água é fonte de vida, negá-la a alguém é negar a sua sobrevivência.
A OIT, de acordo com a Convenção 29 de 1930 (Decreto n. 41721/57), considera que “a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente”.
De modo que é necessário estabelecer, de imediato, a irrelevância do consentimento da vítima em aceder ao trabalho para caracterização da escravidão contemporânea: ora, é possível falar em consentimento quando há opção, concordar ou não, poder discutir o que está sendo proposto, o que não acontece com a pessoa cuja sobrevivência está em jogo – entre passar fome e tentar a sorte com promessa de trabalho e comida, melhor a segunda alternativa, não importa a que preço.
Evidente que o infrator (explorador) pode alegar que não é responsável por esta situação da vítima, mas não há dúvida de que responde pelas condições em que alocar a pessoa aliciada, a demonstrar, claramente, a prévia intenção de dano (animus nocendi, abutendi e lucrandi), de usar, abusar e lucrar do contratado, tratando-o como coisa (bem descartável), e aproveitando-se de sua vulnerabilidade.
Vê-se, pois, a evolução da vis absoluta na escravidão clássica para a vis compulsiva na submissão atual, mas identicamente apta a reduzir a vítima à condição de objeto. A coação moral que vicia o consentimento do trabalhador na prática é a que nasce de sua condição vulnerável (falta de opção para sobrevivência) ou é imposta pelo conjunto das circunstâncias em que explorado o trabalho. A vulnerabilidade da pessoa favorece o “consentimento” ao aliciamento e à exploração, como também as condições geográficas da região e a distância da presença do Estado na vida do indivíduo – quanto mais inóspita a localidade, quanto menos atendida pelo Estado, maior o potencial de exploração de trabalho escravo.
Assim, contextualizamos a escravidão contemporânea como o conjunto de práticas tendentes a limitar a vontade da vítima, por qualquer meio apto a esta finalidade, aproveitando ou não de sua vulnerabilidade ou fragilização social, e impondo condições degradantes de trabalho que aviltam a dignidade humana.
Nesta definição, o consentimento da pessoa para a exploração é irrelevante por não deter ela nenhum poder de decisão ou mudança sobre as condições de trabalho.
OBS: As opiniões expressas nos artigos publicados neste espaço pertencem exclusivamente aos autores dos textos, não representando o posicionamento do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região em relação ao conteúdo abordado.