Professora Katherine Lippel fala sobre o Direito do Trabalho canadense na Escola Judicial
A Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS) recebeu na tarde dessa quinta-feira (26) a professora canadense Katherine Lippel, da Universidade de Ottawa, para o seminário “Proteções Jurídicas ao Empregado no Brasil e no Canadá: Uma Comparação”. Katherine ofereceu ao público um panorama da legislação trabalhista canadense, com foco na província de Quebec, de onde é natural. A seguir, a corregedora do TRT-RS, desembargadora Beatriz Renck, fez uma análise do Direito do Trabalho no Brasil. A mediação do seminário ficou a cargo do diretor da Escola Judicial, desembargador José Felipe Ledur.
Na abertura de sua exposição, Katherine fez elogios ao texto constitucional brasileiro, por garantir expressamente no seu artigo 7º a proteção a uma lista de direitos sociais, e comentou que a Constituição do Canadá não é tão avançada nesse aspecto. Ao longo da palestra, apontou várias diferenças entre o Direito brasileiro e o canadense, como, por exemplo, a ausência de um Tribunal do Trabalho no Canadá – a competência sobre a matéria é dividida em vários órgãos, e além disso a legislação trabalhista também não é totalmente unificada no país.
Cada uma das 13 províncias e territórios do Canadá possui um Direito do Trabalho próprio, e também há um Direito do Trabalho federal. Portanto, pode-se falar em 14 Direitos do Trabalho diferentes no país. A primeira ferramenta constitucional do Canadá, de 1867, estabeleceu a separação entre a jurisdição federal e a das províncias e territórios. Na prática, apenas 10% dos trabalhadores canadenses são regidos pela legislação federal.
Katherine citou alguns direitos constitucionais ligados ao Direito do Trabalho, aplicáveis a toda população do país. Um deles é a liberdade de associação. A partir desse direito, houve uma importante decisão na Suprema Corte do Canadá, em 2015, afirmando que o direito de negociação coletiva é protegido pela Constituição. Outro direito constitucional destacado por Katherine foi a liberdade de expressão. A interpretação da liberdade de expressão permitiu a proteção do que os canadenses chamam de direito de piquetage, referente às manifestações dos trabalhadores grevistas. Conforme o direito de piquetage, a liberdade de expressão aplica-se tanto às manifestações primárias quanto às secundárias. A manifestação primária é aquela feita pelos trabalhadores na porta da fábrica, diretamente contra os empregadores. “Já a manifestação secundária ocorre, por exemplo, quando funcionários da Pepsi saem às ruas com cartazes incentivando as pessoas a não consumirem os produtos da empresa. Esse direito também está protegido pela liberdade de expressão”, explicou Katherine.
Após analisar os direitos constantes na Constituição do Canadá, Katherine abordou o Direito Trabalhista de Quebec. Entre as fontes de Direito utilizadas na Província, citou a Carta dos Direitos e Liberdades. Para o Direito Trabalhista, a regra mais importante extraída da Carta é a proibição da discriminação – o que também inclui as diferentes formas de assédio. Ela também protege as liberdades fundamentais, como a religiosa, de consciência, de liberdade de expressão, de reunião pacífica e de livre associação. A palestrante destacou ainda o direito à proteção da dignidade: “Antes de termos uma lei específica sobre o assédio moral, usávamos esse artigo para considerar o assédio uma violação à proteção da dignidade”, ressaltou.
Além da Carta dos Direitos e Liberdades e do Código Civil de Quebec, há outras legislações na Província que são mais diretamente ligadas ao Direito do Trabalho. O Código do Trabalho de Quebec destina-se apenas aos trabalhadores sindicalizados, que representam 40% dos assalariados. Os não-sindicalizados são regidos pela Lei das Normas de Trabalho. Há, ainda, normas mínimas de trabalho que se aplicam a todos os assalariados, como a remuneração por horas extras, férias e a semana de trabalho de 40 horas. A palestrante também falou sobre pontos da legislação que se referem à proteção da saúde e da segurança no trabalho. “Se um asmático é exposto à fumaça de cigarro, pode solicitar ao empregador a transferência para outro posto. E se não houver essa possibilidade, pode ser afastado e continuar recebendo 90% do seu salário líquido”, exemplificou. Em 2004, Quebec criou a primeira lei contra o assédio psicológico da América do Norte. Conforme a lei, é dever do empregador garantir um ambiente de trabalho onde o assédio não ocorra.
Apesar do grande número de direitos assegurados na legislação, conforme demonstrado ao longo da palestra, Katherine afirmou que o problema no Quebec e no Canadá se relaciona à efetividade desses direitos. Em Quebec, 13,3% dos trabalhadores são autônomos (não assalariados) e dispõem de poucas proteções, mesmo no que se refere à saúde e à segurança. No Canadá, 35% dos trabalhadores se encontram em alguma situação de precarização, como no caso dos autônomos ou dos trabalhadores temporários. “São pessoas que estão muito vulneráveis, e que muitas vezes nem sabem quais são seus direitos”, concluiu.
O Direito do Trabalho no Brasil e o problema da efetividade
Na segunda palestra da tarde, a corregedora do TRT-RS, desembargadora Beatriz Renck, falou sobre o Direito do Trabalho no Brasil. A magistrada iniciou sua exposição afirmando que o Brasil possui uma grande quantidade de regras e uma legislação muito evoluída no que se refere à defesa dos direitos dos trabalhadores. Mas, retomando a observação que Katehrine Lippel fez a respeito do problema da efetividade dos direitos, declarou que, na prática, há uma precarização imensa das relações de trabalho no Brasil: “Nossas normas são avançadas, mas não correspondem à realidade da vida e do bem-estar dos nossos trabalhadores.”
A desembargadora ressaltou que, além do Brasil contar com uma legislação federal sobre o tema desde a CLT, houve uma importante e profunda alteração sobre a interpretação das normas a partir da Constituição Federal de 1988. Segundo a magistrada, o texto constitucional trouxe não apenas regras, mas princípios, e levou o princípio da dignidade da pessoa humana à posição de valor fundante da ordem jurídica. Desse princípio decorre a proteção do direito da personalidade, que se traduz no respeito à privacidade, à intimidade, à honra e à imagem. “A relação de emprego é um campo fértil para pensarmos nessas questões, porque o trabalho é fator e condição da dignidade humana”.
A magistrada defendeu em sua exposição que a interpretação das normas deve sempre levar em consideração os princípios constitucionais e a defesa dos direitos fundamentais. Portanto, ao se falar em Direito do Trabalho, é necessária uma reflexão sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. “Não existe igualdade real entre todos os indivíduos. Há grupos com mais relevância, que podem atuar causando opressão e injustiça”, salientou.
A proteção dos direitos da personalidade garante que, mesmo que o trabalhador tenha que se submeter às normas da organização do trabalho, ele continua com todos os seus direitos íntegros. O empregador tem o dever, por exemplo, de manter um ambiente de trabalho sadio, seja do ponto de vista da saúde física quanto da saúde psicológica. “Nossa Constituição é extremamente avançada ao dizer expressamente que os direitos fundamentais têm eficácia imediata”, afirmou.
A desembargadora reconheceu que no Brasil não há uma lei específica sobre assédio psicológico, como ocorre no Canadá. Mas afirmou que é possível extrair a norma sobre o assédio do texto constitucional, que prevê a indenização material e moral em caso de violação da intimidade, da vida privada, da honra e imagem. “Isso ocorre nas empresas que impõem a seus empregados metas impraticáveis, submetendo os trabalhadores a humilhações e chacotas”, exemplificou. Essa regra constitucional pode ser aplicada em várias situações que envolvem a violação ao direito de personalidade, como acidentes de trabalho, doenças profissionais, assédio moral ou sexual e quaisquer outras ofensas.
Ao longo da palestra, a magistrada também analisou os direitos sociais e coletivos previsto na Constituição, bem como as diversas normas de proteção ao trabalhador asseguradas pela CLT. Entre os recentes avanços na legislação, citou a Emenda Constitucional 72/2013, que estendeu direitos aos trabalhadores domésticos. Ao final da exposição, reiterou que a legislação brasileira é bastante avançada, com princípios e regras típicas de um verdadeiro Estado de Bem-Estar Social, mas que isso infelizmente ainda não pode ser observado na prática. “Há uma triste realidade que não gostamos de ver, como a precarização do trabalho, o trabalho escravo e o trabalho infantil. O debate sobre o tema é importante porque nos motiva a continuar lutando, buscando meios para modificar essa realidade”, concluiu.