''Novo CPC é uma mudança de paradigma para a uniformização de jurisprudência nos Tribunais'', analisa o desembargador Francisco Rossal de Araújo
Nesta sexta-feira (18/03), entra em vigor o novo Código de Processo Civil. As mudanças trazidas pelo novo CPC foram tema de um seminário na Escola Judicial do TRT-RS no dia 4 de março, com a participação dos desembargadores João Pedro Silvestrin (vice-presidente do Tribunal) e Francisco Rossal de Araújo (presidente da 1ª SDI e integrante da 8ª Turma). Leia abaixo uma entrevista concedida pelo desembargador Francisco Rossal, na qual ele analisa os principais impactos do CPC para a Justiça do Trabalho:
Qual é a relação do CPC com o Processo do Trabalho?
O CPC tradicionalmente é subsidiário ao Processo do Trabalho. Isso já estava expresso no artigo 769 da CLT, que diz que o CPC deve ser aplicado na falta de uma disposição da Consolidação. O novo CPC mantém esse entendimento, porque ele se apresenta com uma parte geral, e coloca-se como subsidiário aos processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos na ausência de normas que os regulem. É o que podemos ler em seu artigo 15. Ou seja, a CLT e o novo CPC dizem a mesma coisa. Portanto, a regra da hermenêutica tradicional continua sendo a mesma: eu primeiro busco a regra no procedimento trabalhista específico e, se não houver, aplico subsidiariamente o CPC. É claro que, nos casos concretos, podem surgir algumas discussões. Mas, em linhas gerais, o raciocínio continua sendo esse.
Quais são os maiores impactos do novo CPC para a Justiça do Trabalho?
Sem dúvida alguma o maior impacto será no sistema recursal. Porque nesse tema há uma verdadeira mudança de paradigma. Há outras alterações importantes, mas que não vejo com o mesmo destaque do sistema recursal. O CPC traz, por exemplo, algumas novidades na execução. Há uma regulação satisfatória sobre a penhora on-line, que ainda não tínhamos, e isso é um avanço. Além disso, ele disciplina melhor as tutelas cautelares, divide a tutela provisória em tutela de urgência e de evidência, e soluciona problemas que tínhamos entre os processos cautelares e a antecipação de tutela. Mas, repito, essas mudanças que listei não são centrais. O grande impacto está no sistema recursal.
Quando falo na mudança do sistema recursal não me refiro aos recursos em espécie. Porque continuaremos aplicando os recursos trabalhistas. A questão principal está nos incidentes relacionados à uniformização de jurisprudência. Aqui entram o incidente de resolução de demandas repetitivas e o incidente de assunção de competência, previstos no novo CPC. A Justiça do Trabalho já vinha se aproximando desse contexto desde a Lei 13.015/14, que trata do Recurso de Revista. Mas agora o tema se projeta também para os Recursos Ordinários. Esses mecanismos poderão ser utilizados já no segundo grau, para uniformização de jurisprudência, sem a necessidade de se aguardar que o processo chegue nas instâncias superiores. A mudança pode ser interessante para a Justiça do Trabalho a médio e longo prazo, no sentido de dar mais coerência à sua jurisprudência, mais validade às suas decisões, maior previsibilidade e, inclusive, acelerar o julgamento desses processos.
Esse tipo de questionamento não era comum no segundo grau?
Não. Aqui no segundo grau nós continuávamos até então decidindo com olhar mais voltado para a tradição individualista, caso a caso, e não para o conjunto de casos. O problema é que um Tribunal que decide ora de uma forma, ora de outra, gera insegurança para a sociedade. O jurisdicionado precisa de algum grau de certeza. No caso dos trabalhadores, para saberem qual é a real dimensão dos seus direitos, e no das empresas, qual é a real dimensão dos seus deveres. Isso está relacionado à ideia de previsibilidade. O papel do Judiciário é garantir a liberdade das pessoas, seus direitos subjetivos, mas também garantir a segurança jurídica. É o que está representado na balança do Direito. O novo CPC traz um instrumental que poderá ser utilizado para a uniformização da jurisprudência, especialmente com o incidente de resolução de demandas repetitivas e o incidente de assunção de competência. Se bem utilizados, eles podem trazer resultados positivos para a jurisdição.
Qual é a diferença ente o incidente de resolução de demandas repetitivas e o de assunção de competência?
O incidente de resolução de demandas repetitivas ocorre quando há muitos casos semelhantes, mas com decisões diferentes. Ele tem dupla natureza: uma é retrospectiva, pois ele se aplica a todos os casos anteriores, e outra é prospectiva, pois também se aplica a novos casos que surgirem no futuro e se adequarem. Em vez de decidir um caso, o Tribunal decide 500, por exemplo. E os próximos que vierem, se for provado que se enquadram naquele modelo, têm a mesma solução.
Já no incidente de assunção de competência, há um único caso, mas com grande impacto social. Vamos supor, por hipótese, que um determinado município altere a data de pagamento de seus empregados celetistas. Digamos que isso gere uma série de ações dos empregados na Justiça do Trabalho, que essas ações cheguem a diferentes juízes, e suas decisões sejam diferentes. Isso geraria uma instabilidade na Jurisprudência. É um único caso, mas com grande impacto social. Com o incidente de assunção de competência, o Tribunal decide o caso, e a solução se aplica a toda aquela comunidade. Esse incidente tem apenas caráter prospectivo, porque ele resolve todos os casos semelhantes que surgirem.
Uma das grandes novidades do CPC é que essas decisões são vinculantes, e a jurisprudência se torna fonte formal de Direito. Esse princípio está consagrado nos artigos 926 e 927.
O TRT-RS já está adaptando-se a essa nova realidade?
Certamente. Basta ver o grande número de súmulas que foram editadas ao longo de 2015. Avançamos muito nesse aspecto, há um trabalho incessante por parte do nosso Tribunal com relação aos Incidentes de Uniformização de Jurisprudência. Para esse ano, já estamos com cerca de 40 IUJs programados para serem decididos. Nesse sistema, estamos uniformizando nossa jurisprudência sob o impacto da Lei 13.015/14, que nasceu inspirada no texto do novo CPC. A diferença, como mencionei, é que ela se aplica apenas ao Recurso de Revista, enquanto o novo CPC traz essa realidade também para o Recurso Ordinário. Com o novo CPC, passaremos a construir jurisprudência também a partir de casos repetitivos locais.
Há uma leitura de que essa mudança do novo CPC aproxima o Brasil da tradição da common law, devido à valorização dos precedentes. O senhor concorda com ela?
A ideia de que há uma aproximação, por causa dos precedentes, está correta. Mas isso não me impressiona, não me deixa deslumbrado. O Brasil tem uma tradição romano-germânica, desde sua herança portuguesa. Nela, a fonte principal do Direito é a lei. Nos países da common law, como é o caso da Inglaterra, o costume jurisprudencial é a fonte preponderante. Esse não é o nosso caso, e nem será. No Brasil, temos códigos. Continuaremos com a CLT. As normas trabalhistas não serão criadas pela tradição. O primado da criação do Direito continua sendo a Lei, que é uma função do Poder Legislativo. O Judiciário vai criar precedentes nas lacunas, nos casos repetitivos. É uma função supletiva e residual, e não central.
Outro tema que o senhor abordou durante o seminário na Escola Judicial foi a fundamentação das sentenças. O que muda nesse aspecto?
Esse é outro tema polêmico, que se refere ao parágrafo primeiro do artigo 489. Há um certo receio de que o juiz fique refém de argumentos impertinentes ou procrastinatórios trazidos pelas partes, e que tenha que rebater um a um. Mas a leitura do dispositivo afasta esse entendimento, pois mostra que o juiz precisa enfrentar os argumentos que, em tese, guardem algum nexo de causalidade com a decisão do julgador. Se não houver, eles estão descartados. Basta dizer que não guardam nexo com a causa. É claro que as sentenças têm que ser fundamentadas. Isso é o uma garantia Constitucional. Eu interpreto o art. 489 do CPC como uma consequência do artigo 93, IX, da Constituição Federal, que é o dever da fundamentação: esse é um dever que se impõe aos juízes e um direito dos cidadãos.
Outro ponto que vale ressaltar é que o novo CPC reforça o combate à litigância de má-fé, e traz a novidade da pena por desrespeito à Corte. Ela está no artigo 77. Além da multa que reverte à outra parte por litigância de má-fé, há outra multa que reverte para o Estado, pelos atos atentatórios à atividade da Justiça e pelas atitudes que a parte tome ao não cumprir decisões judiciais. Penso que o Judiciário talvez tenha que se debruçar sobre esse novo instrumento, com um redimensionamento das penas por litigância de má-fé. Além do sentido subjetivo, da parte que age intencionalmente de má-fé, acho que já podemos falar sobre uma litigância de má-fé objetiva, ou seja, sobre a parte que manifestamente desconhece as posições dominantes de um Tribunal, seus precedentes. Porque se o movimento de uniformização de jurisprudência e a exigência de fundamentação vale para os juízes, também deve valer para os advogados. O Código tem que ser pensado para todos os sujeitos do processo, e não apenas para um deles. Nesse sentido, se exijo maior fundamentação do juiz na sentença, também devo exigir mais atenção dos advogados às teses. Mas esses são temas que a jurisprudência vai construir. É diferente falar sobre o novo Código agora ou daqui a dez anos. Só vamos descobrir as reais virtudes e vícios do novo CPC com a sedimentação da jurisprudência.