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Publicada em: 30/07/2024 10:32. Atualizada em: 30/07/2024 10:33.

Artigo: "O combate ao tráfico de pessoas", de autoria do juiz Charles Lopes Kuhn

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Início do corpo da notícia.

Imagem em close de duas mãos de um homem segurando uma cerca losango, a foto está em preto e branco.Longe da preocupação diária das pessoas que têm a sorte de gozarem de mínima inclusão social e econômica, o tráfico de pessoas ainda continua sendo praticado, ganhando contornos dramáticos não apenas pela atroz consequência para a vida das vítimas, como também por atingir justamente aquelas pessoas que se encontram em condição de maior vulnerabilidade, marcadas frequentemente pela atuação interseccional de mais de um fator de discriminação. 

Por constituírem práticas potencialmente lucrativas, as cadeias criminosas de deslocamento forçado de pessoas não apenas conseguem atuar com relativa eficiência, como chegam inclusive a obter amparo de governos e da Lei. É o que nos relata, por exemplo, o ocorrido aqui mesmo, na América dos séculos XVI a XIX, com a infame escravização em massa de pessoas, adotada à época como parte do próprio sistema econômico.

Passados séculos desde então, o fantasma ainda persiste.

Como se costuma dizer, é só piorar as condições normais de “temperatura e pressão” dentro de nossa sociedade, para que a “corda” continue a arrebentar no lado mais fraco. 

Foto do juiz Charles Lopes Kuhn
Juiz Charles Lopes Kuhn 

Assim ocorre, por exemplo, em países dominados pela pobreza ou que passam por guerras civis entre diferentes etnias, onde famílias inteiras acabam investindo seus reduzidíssimos recursos para entregar filhos e filhas nas mãos de “coyotes” - como são comumente chamados aqueles envolvidos na atividade de transposição ilegal de fronteiras e, não raro, de desviar pessoas para alimentar atividades como de exploração sexual e tráfico de órgãos.

Assim corre também em países como o Brasil, onde os circuitos de produção e reprodução das redes de tráfico de pessoas acabam atuando por entre as fissuras de nossa organização social, aproveitando-se da pobreza, da desestruturação familiar, de dramas relacionados ao clima (a exemplo da seca), mas, também, de desvios coletivos de caráter, facilitada que é essa prática por sentimentos de ódio ou de desprezo como a aparofobia, a xenofobia, a misoginia e o racismo.

Como uma luz na fim do túnel,  a comunidade internacional vem firmando protocolos e acordos de cooperação com definição de medidas para punição de responsáveis e amparo às vítimas, incluindo, também, amplas campanhas de conscientização da sociedade.

É nesse cenário que se enquadra a definição do dia 30 de julho como dia internacional, e nacional, de combate ao tráfico de pessoas.

Nessa mesma linha, veio o Brasil a aderir ao Protocolo adicional à Convenção da ONU “contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, adotado em Nova York em 15 de novembro de 2000” e ao Protocolo de Palermo de 2004, entre outros, assumindo compromissos internacionais de agir para punir responsáveis e amparar as vítimas, o que vem sendo paulatinamente implementado, a exemplo do IV Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas lançado justamente neste dia 30 de julho de 2024. 

Também no Brasil, embora ainda pouco conhecido pelo conjunto da sociedade, houve inclusão de um novo tipo no código penal (art. 149-A), definindo como crime sujeito a prisão “Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso...” para as atividades descritas em seus incisos. 

A leitura de tais incisos, aliás, mais que uma descrição de condutas ilegais, serve também como choque de realidade, trazendo aos nossos olhos práticas absolutamente aviltantes, mais compatíveis com mirabolantes produções cinematográficas do que com o mundo em que muitas vezes acreditamos viver. 

Art. 149-A.  (...) com a finalidade de:   

I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;             

II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;

III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;            

IV - adoção ilegal; 

V - exploração sexual.

Diferentemente do que se poderia pensar, a definição desses crimes ou de aumento de pena os casos em que “II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência” ou de que “III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função”, não se trata de exagero ou excesso de zelo por parte do poder público, mas de uma dura e persistente realidade que devemos ajudar a debelar.

Para além da confortável noção de normalidade que habita o imaginário em nossos lares de pessoas social e economicamente incluídas, já é hora de superarmos a invizibilização das cadeias criminosas do tráfico de pessoas que continuam promovendo o sequestro de crianças, a exploração sexual de mulheres e a imposição de condições servis e de escravidão. 

No atual patamar civilizatório, já soa como inadmissível que seja a sorte sobre o lugar e classe social de nascimento que defina se uma mulher será expropriada de sua vida e da sua liberdade sobre seu corpo, se uma criança terá oportunidade de crescer de forma razoavelmente saudável (e com esperanças de um futuro melhor) ou se um trabalhador terá assegurado trabalho em condições dignas, seguras e razoavelmente retribuídas.

Chega disso. 

Que este 30 de julho constitua, ao menos, a oportunidade de se vislumbrar a sujeira que esquecemos por debaixo de nossos próprios tapetes, passo importante para fazermos nossa própria lição de casa e deixarmos de descuidar do que nossa sociedade ainda produz em termos de injustiça e de sofrimento para grande número de pessoas.

Charles Lopes Kuhn
Juiz do Trabalho
Gestor regional do Programa de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, Tráfico de Pessoas e Proteção ao Trabalho do Migrante
  

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Fonte: Secom/TRT-4
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