Na Ponta da Língua: “trata-se de” ou “tratam-se de”?
Trata-se de acusações? Tratam-se de alegações? Trata-se de recurso impetrado? Tratam-se de testemunhas confiáveis? Qual dessas formas está correta, afinal?
O verbo tratar
Do latim tractare, é um verbo com inúmeras acepções e diversos usos. Basta procurar no Dicionário Aurélio e você verá a grande quantidade de regências que ele pode apresentar.
Ainda assim, o uso mais comum no meio jurídico é no sentido de “discorrer, falar, expor, explanar”, ou “ter por assunto, por objeto; versar, constar”.
Veja alguns exemplos:

Note que, nessas acepções, é um verbo transitivo indireto (isto é, exige a preposição “de”), motivo pelo qual não admite voz passiva.
Mas há, ainda, o sentido de “manter relações entre si”. Nesse caso, por ser reflexivo, exige o pronome reflexivo “se”.
Veja alguns exemplos:
Tratam-se com bastante pompa e cerimônia. (um ao outro)
Tratam-se muito bem, afinal amam-se muito.
Tratar-se de
De certa forma, a locução “tratar-se de” se aproxima em termos semânticos do verbo “ser”, com o sentido de “apresentar algo”, “ter por assunto, por objeto”, assim como o simples “tratar”, que vimos há pouco. É o que se responderia a quem perguntasse: “De que se trata?”
Trata-se de uma explicação singela.
que equivaleria a:
É uma explicação singela.
Ou também:
Trata-se de pedido de apoio institucional.
que equivale a:
É um pedido de apoio institucional.
A cantora e compositora Cássia Eller, por exemplo, usou a expressão com esse significado em uma de suas canções (e duvido você não ficar com a música tocando suavemente na cabeça depois de ler os versos exemplificativos):
“Quando o segundo sol chegar
Para realinhar as órbitas dos planetas
Derrubando com assombro exemplar
O que os astrônomos diriam
Se tratar de um outro cometa [...]”
A estrutura é, portanto, invariável: É “trata-se de” e ponto. (Ou “se tratar”, quando usada a próclise da Cássia Eller).
Aliás, importante referir que a construção “trata-se de” não admite sujeito, daí ser totalmente impróprio construir orações como:
O reclamante trata-se de trabalhador rural.
O requerimento trata-se de pedido de horas extras.
O sujeito é indeterminado, e prova disso é o índice de indeterminação do sujeito, isto é, o pequeno “se” que inserimos junto ao verbo. Nesses casos, pode-se simplesmente substituir o "trata-se de" por "é" ou verbo com sentido equivalente, como em “O reclamante é trabalhador rural”, ou simplesmente omitir o "-se", como em "O requerimento trata de pedido de horas extras".
Até aqui, tudo bem.
A grande confusão acontece quando se tem uma expressão no plural e se tenta aplicar a voz passiva sintética ao verbo (como ocorre em “alugam-se apartamentos”, por exemplo), considerando que a expressão “tratam-se” também existe, como vimos logo acima.
É isso que nos leva a usar o “tratam-se de”, como em “Tratam-se de solicitações descabidas”. Juntamos uma coisa à outra e está feita a bagunça!
Ocorre que “tratam-se de” não existe na língua culta. Domingos Paschoal Cegalla, um dos mais renomados gramáticos da Língua Portuguesa, ensina que o verbo “tratar” deve ser usado obrigatoriamente na terceira pessoa do singular, mesmo que o termo ou a expressão seguinte esteja no plural.
Veja alguns exemplos:
Trata-se de tarefas que exigem habilidade.
(ainda que “tarefas” seja plural)
Na verdade, tratava-se de fenômenos pouco conhecidos na época.
(ainda que “fenômenos” seja plural)
Durante o encontro dos dois líderes políticos, tratou-se de problemas
que afligem as populações pobres.
(ainda que “problemas” seja plural)
Assim, o plural de "Trata-se de pedido de natureza indenizatória" será "Trata-se de pedidos de natureza indenizatória", e não "Tratam-se de pedidos de natureza indenizatória".
Resumindo:
O correto é “trata-se de”, verbo transitivo indireto, que fica no singular ao lado da partícula "se" e tem o complemento introduzido pela preposição "de".
“Tratam-se de” não existe.
O que existe é “tratam-se”, sem o “de”, no sentido reflexivo.
E, respondendo à nossa primeira pergunta, estão corretas as formas: Trata-se de acusações; Trata-se de alegações; Trata-se de recurso impetrado; Trata-se de testemunhas confiáveis.
Por hoje era isso.
Trata-se, apenas, de tentar simplificar.
Até a próxima!
Lara Martins
Servidora da Escola Judicial, Lara Martins é graduada em Letras e tem pós-graduação em Direito Administrativo, pela LFG. Como trabalho final, escreveu artigo intitulado "A concretização do princípio da Publicidade pela simplificação da linguagem".