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Publicada em: 07/08/2024 16:20. Atualizada em: 09/08/2024 16:03.

Na Ponta da Língua: a dúvida que sempre resta: a utilização do verbo “restar”

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Logomarca da editoria "Na Ponta da Língua"Resta evidente, resta claro, restou comprovado. Quem nunca utilizou o verbo “restar” dessa forma que atire a primeira pedra! 

Do latim restare, o verbo intransitivo “restar” apresenta, originalmente, o sentido de sobrar, subsistir, e, em alguns casos, continuar. Na linguagem jurídica, contudo, o verbo tem sido usado equivocadamente como verbo de ligação, como acontece nos seguintes exemplos:

É cabível a arguição de prescrição em razões de recurso ordinário, já que se trata de instância ordinária, na qual restam observados contraditório e a ampla defesa. Incidência da Súmula nº 153 do TST.

No caso dos autos, resta caracterizado o cerceamento de defesa [...].Logomarca do projeto "Linguagem Simples"


Verbos de Ligação

Verbos de ligação, como aprendemos desde cedo na escola, são aqueles que costumam fazer a ligação entre o sujeito da oração e suas características. Também chamados de copulativos, eles podem significar ainda transição, mudança de estado, continuidade, semelhança, entre tantas outras possibilidades. 

Veja alguns exemplos:

O adicional noturno [=sujeito] é devido [=característica] relativamente às horas laboradas em prorrogação ao horário noturno após as 5h da manhã [...]. 

A reclamante [= sujeito] está afastada [=característica], de forma ininterrupta, desde o início do mês de maio.
[...] O autor sempre informou aos seus superiores na empresa da impossibilidade de comparecer ao trabalho, situação [=sujeito] que parecia ter sido entendida [=característica] pelo encarregado.

Costuma-se dizer também que, em virtude dessa sua característica mais simples, de ser apenas um elo, mesmo que os verbos de ligação fossem retirados das construções, estas manteriam algum sentido, ainda que, em termos gramaticais, elas parecessem ficar incompletas. Analise os exemplos abaixo, faça o teste e pense a respeito:

A servidora está em férias.
Em que “A servidora em férias”, sem o “está”, permanece com sentido e permite ao interlocutor saber o que se diz a respeito da servidora.


O cronograma permanece fechado até definição posterior.
Em que “O cronograma fechado”, sem o “permanece”, continua com sentido e permite ao interlocutor saber o que se diz a respeito do cronograma.

Lembro que, de maneira a memorizar tais verbos, uma professora de Língua Portuguesa que tive na escola pediu que lêssemos um conto de Pedro Bandeira intitulado “Serespaperconfi”. Após a leitura do conto, tirando todas as suas nuances de romance melodramático adolescente, pudemos constatar que a palavra era uma forma utilizada para facilitar a memorização dos verbos de ligação, isso porque cada uma de suas sílabas indica um dos verbos de ligação existentes na língua portuguesa, quase como um acrônimo:

Ser | es | pa | per | con | fi 
“ser”, de ser; “es”, de estar; “pa”, de parecer
“per”, de permanecer; “con”, de continuar e “fi”, de ficar.

A partir daí, não é difícil constatar que esse não pode ser o caso do verbo “restar”, não só porque ele não consta da “lista” do Pedro Bandeira, mas porque, sobretudo, constitui um verbo intransitivo. Se verbo de ligação fosse, seria aceitável produzir algo como “o homem resta morto”, o que, convenhamos, não soa muito bem, como bem dizia o grande professor de Língua Portuguesa Adalberto J. Kaspary, lamentavelmente falecido em julho de 2017. 

Em frases como as abaixo, então, o ideal é que o verbo “restar” seja substituído pelas formas “ser” ou “ficar” (verdadeiros verbos de ligação)

Assim: 

Em vez de: Utilize:
A lei restou revogada. A lei foi revogada.
Resta evidente a culpa da trabalhadora. Fica evidente a culpa da trabalhadora.



Restar = Continuar

Há um caso, contudo, em que o uso de “restar” não representa qualquer impropriedade. Isto é, quando ele apresenta o sentido de “continuar” (ainda que este seja verbo de ligação), seu uso é legítimo. 

Assim, a utilização do verbo “restar” parece correta no seguinte exemplo:

Restam (= continuam, ainda estão) pendentes de análise os cálculos trazidos pela reclamada.

Nesse caso, então, não há necessidade de substituí-la por qualquer outra, e quanto a isso, creio que não reste dúvida. 

Resumindo: 

  • O verbo restar tem sido muito utilizado no meio jurídico com o sentido de “ser”, “estar” ou mesmo “ficar” (resta evidente = fica evidente), ambos verbos de ligação. Esse uso, contudo, está equivocado.

  • No entanto, com o sentido de “continuar”, o uso é autorizado, como fica claro na oração “Restam (= continuam, ainda estão) pendentes de análise os cálculos trazidos pela reclamada.”

  • Na dúvida, prefira sempre substituir o verbo “restar” por outros cujo sentido não seja tão controvertido, como é o caso dos verbos de ligação “estar” e “ficar”, como no seguinte exemplo: “No caso dos autos, fica (e não: resta) caracterizado o cerceamento de defesa [...].”

  • Apesar de todo o exposto, não estranhe se, no futuro, ele também passe a fazer parte da lista de verbos de ligação. Afinal, é o uso que fazemos da língua que, aos poucos, vai ditando as regras gramaticais. 


Por hoje era isso.

Que não restem dúvidas a respeito do assunto. Mas, se restarem, continuo à disposição! 

Até a próxima!

Lara Martins 

Servidora da Escola Judicial, Lara Martins é graduada em Letras e tem pós-graduação em Direito Administrativo, pela LFG. Como trabalho final, escreveu artigo intitulado "A concretização do princípio da Publicidade pela simplificação da linguagem".

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Fonte: Secom/TRT-4
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