“Quando abordamos a masculinidade tóxica não estamos falando sobre você, mas sobre como você foi ensinado a ser homem”, declara a professora Rita Von Hunty
A “masculinidade tóxica” foi o tema da palestra da professora Rita Von Hunty no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS), na última sexta-feira (18/8). Ao longo de três horas, a palestrante falou para um público que lotou o Plenário do Tribunal, em um debate sobre o conceito que impacta negativamente homens e mulheres na sociedade atual. “Quando elencamos os termos ‘masculinidade’ e ‘tóxica’, não estamos falando sobre você, estamos falando sobre como você foi ensinado a ser homem”, observou Rita ao comentar o título do evento.
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A abertura da palestra foi dedicada a demonstrar, a partir de fontes teóricas e exemplos práticos, que é um erro acreditar em um modelo único de masculinidade, destacando que ele foi criado para atender a interesses determinados. “Qualquer ideia que for apresentada a você como ´sempre foi assim´, ´é do interesse de todos´ ou ´não tem como mudar´, na verdade é o interesse da classe que está no poder naquele momento”, observou.
A origem do modelo hegemônico de masculinidade, conforme a palestrante, remonta ao mundo antigo, quando o modelo social era baseado na lógica de que aqueles que tivessem o maior exército ficavam com a maior fazenda. “A partir daqui, a história de política externa, de impérios, vai ser a guerra. Foi cultivado um modelo de masculinidade do homem que está disposto a matar e morrer por algo”, afirmou.
De acordo com a professora, o processo de colonização marcou a exportação desse modelo para o novo mundo. Além da grafia, da catequese e da escravidão, a ideia de masculinidade também teria chegado nas colônias. Rita explicou que, quando o homem europeu desembarcou nas Américas e precisou falar com representantes dos grupos locais, ele sempre iria se dirigir a homens, mesmo quando a liderança de um povo fosse feminina. “Isso muda a dinâmica de poder nos povos colonizados, que agora vão desconsiderar a mulher, porque quem faz a trama de aliança da colonização é o homem. A colonização opera inclusive na destituição de poder das mulheres”, observou.
Ainda nesse ponto, Rita destacou que a categoria de poder masculino não está acessível a todos os corpos. “Como se faz para ser homem sendo soldado, quando alguém está acima de você? Como se faz para ser homem sendo cristão, se é necessário dar a outra face ao tapa? Como se faz para ser homem sendo pobre, se o homem é provedor?”, questionou.
Um terceiro tópico abordado foi o impacto negativo da masculinidade tóxica para os próprios homens. Ela observou que a população masculina no planeta apresenta números quatro vezes maiores de suicídio, quando comparados com a população feminina, além de figurarem em uma estatística dez vezes maior de morte por crimes violentos. “Existem perguntas subjetivas que você pode tentar responder: qual foi o modelo de carinho no qual você foi socializado? Recebia abraço, bejio, ouvia ´eu te amo´ de quem? Estabelecia diálogo, com quem? Qual relação era fria e distante, de obedecer ordens, e qual tinha proximidade?”, questionou. A palestrante explicou que o conceito de “masculinidade tóxica”, cunhado nos anos 90, refere-se a esse modelo de reprodução de masculinidade que não permite diálogo, afeto ou demonstração de fraqueza.
Os números da violência
Ao final de sua exposição, antes de abrir espaço para as perguntas do público, Rita apresentou estatísticas do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022. Conforme o documento, os feminicídios, que ocorrem em razão do gênero feminino da vítima, cresceram 6,1% em 2022, resultando em 1.437 mortes. “Essas mulheres são mortas, na maioria das vezes, em espaços domésticos por seus companheiros ou ex-companheiros. Morrem por saírem com outras pessoas, por não estarem em casa ou por não terem feito o jantar”, comentou.
“Todas as violências contra as mulheres cresceram no ano passado: a patrimonial, a psicológica, a sexual e o atentado contra a vida”, destacou a palestrante. As agressões aumentaram 2,9% (243,7 mil casos), as ameaças aumentaram 7,2% (613,5 mil) e o acionamento do 190 por mulheres, em casos motivados pelo gênero, chegaram a 889,4 mil ligações, o que representa 102 ligações por hora. Os números de assédio sexual aumentaram 49,7% (6.114) e os casos de importunação sexual cresceram 37% (27,5 mil).
Em 2022, também houve o maior registro histórico de estupros de vulneráveis: foram 74.930 casos. Considerando a autoria, assim como nos anos anteriores, na grande maioria dos casos os abusadores são conhecidos das vítimas (82%) e a maioria das vítimas (88,7%) são do sexo feminino.
A violência sexual neste país é praticada dentro de casa, à luz do dia, por familiares e conhecidos contra crianças e adolescentes. Pensar que não construímos um modelo de masculinidade doente é não saber em que país estamos e o que está acontecendo.
Rita concluiu sua fala inicial destacando que é fundamental refletirmos sobre como estamos produzindo ideias de masculinidade e feminilidade para ser possível mudar o paradigma de violência no Brasil. “Não é um debate identitário, é um tema de segurança pública”, acrescentou. “Isso diz respeito a como criamos nossos filhos, como os educamos nas escolas, o que vai compor o currículo escolar. Isso é sobre quais casos chegam para serem julgados aqui, quais tipos de violência chegam nos espaços de trabalho”, refletiu.
Abertura
Na abertura do evento, o vice-presidente do TRT-4, desembargador Ricardo Martins Costa, destacou a importância de uma palestra sobre masculinidade tóxica, “modelo profundamente arraigado em nossa cultura e no nosso imaginário coletivo”. O magistrado acrescentou que, no ambiente de trabalho, a masculinidade tóxica pode aparecer na forma de agressividade, assédio sexual, e na forma da participação feminina nos espaços. “Maior conscientização sobre esse problema e possíveis ações para combater tal forma de agressividade impactarão não apenas na saúde masculina, mas também no ambiente de trabalho em que atuam, e até mesmo nas demais instâncias sociais, o que auxiliará na melhoria da sociedade como um todo”, declarou.
Representando a Escola Judicial do TRT-4, o juiz Rafael da Silva Marques também elogiou a iniciativa, ressaltando a necessidade de debates que promovam um discurso amplamente emancipatório e que exponham os problemas reais da sociedade. O magistrado acrescentou que, mesmo as mulheres sendo as principais vítimas da violência gerada pela masculinidade tóxica, os homens também sofrem suas consequências. “A superação dos modelos sexistas e excludentes passa não pela substituição do homem pela mulher, ou do branco pelo negro, mas pelo aumento da mesa do debate. Estamos aumentando a mesa do debate com amor, compaixão, inclusão e carinho”, concluiu.
O início do evento também foi marcado por uma apresentação musical dos alunos do Projeto Pescar, acompanhados pelo educador social Andre Cintra, pela servidora Angie Catiuscia Costa Miron e pelo servidor Mário Garrastazu Médici Neto. A Comunidade Jurídico-Trabalhista do Projeto Pescar oferece formação socioprofissional gratuita a jovens em situação de vulnerabilidade social, por meio de uma parceria entre organizações públicas e privadas.
A palestra de Rita Von Hunty contou com mediação da servidora Angie Catiuscia Costa Miron. O mestre de cerimônias do evento foi o servidor Juliano Machado dos Santos.
A palestrante
Rita von Hunty é a persona drag do ator e professor Guilherme Terreri. Com formação em Artes Cênicas (UNIRIO) e Língua e Literatura Inglesa (USP), Rita conduz, por meio dos Estudos Culturais, discussões de temas sociais com horizonte emancipatório radical. Ela tem atuado no cinema, no teatro, na TV e no YouTube, além de seus trabalhos como colunista na Carta Capital e vídeo colunista em uma série de outros meios. Como professora convidada ou palestrante, Rita já esteve presente em muitos espaços importantes para as lutas sociais, de sindicatos e escolas públicas a universidades, tanto no Brasil quanto no exterior. Destacam-se suas passagens pela USP, Unicamp, UEPB e o Museu da Resistência, em Lisboa, e a École Polytechnique, em Paris.