Artigo: "A escravidão é branca", de autoria do juiz Rodrigo Trindade

Texto publicado originalmente no jornal Zero Hora, edição de 2 de março de 2023.
José Saramago foi um dos mais importantes intelectuais da língua portuguesa e utilizou da literatura para fazer críticas à sociedade. Em seu livro “Ensaio sobre a Cegueira”, de 1995, utilizou da figura de uma epidemia que levava à perda da visão para denunciar a alienação do homem em relação a ele mesmo. A “cegueira branca” era a denúncia do egoísmo, da covardia e da perda de empatia.
O episódio do resgate de trabalhadores em Bento Gonçalves também chama à reflexão para um seletivo embaçamento perceptivo que, simplesmente, não vê ou tem dificuldades de enxergar duas centenas de pessoas escravizadas em sua vizinhança. Como se fosse possível que chegassem e trabalhassem invisíveis, para, logo depois, desaparecerem.
Condições degradantes, castigos físicos, jornadas exaustivas, submissão a dívidas e impedimento de retorno às suas casas. Esses são, precisamente, os elementos que caracterizam a escravidão contemporânea, e foram relatados por representantes dos resgatados.
A prática da arregimentação de trabalhadores em outros estados para colheitas no norte do RS existe há anos. Ocorrem em condições, no mínimo, temerárias e com fiscalização historicamente insuficiente – principalmente pelo desaparelhamento dos órgãos responsáveis. Foi necessário que um escravizado fugisse e procurasse a polícia para alertar autoridades sobre a situação.
Nos últimos anos, por todo o Brasil, se avolumam denúncias de trabalho escravo urbano e rural. Semanalmente, nos deparamos com notícias de empresas, quase sempre tomadoras de serviços, que se utilizam de terceirizados escravizados e se defendem com um “não sabia”, “não me avisaram”, “não vi”.
O problema da cura dessa cegueira seletiva não vai se resolver com escândalos pontuais, mas a partir de comprometimentos individuais e coletivos permanentes. Sem desviar o olhar e dando os nomes certos aos fatos.
Rodrigo Trindade
Juiz do Trabalho da 4ª Região e professor