Na Ponta da Língua - O verbo “proceder”: Proceder o exame da prova ou proceder ao exame da prova?
Chegou a hora de retomar nossa coluna e continuar a jornada pela compreensão da linguagem e de nosso papel como redatoras e redatores de textos.
Vamos lá?
Das sugestões que temos recebido para este espaço, cabe destaque para o verbo “proceder”. Ele há muito tempo vem dando as caras de forma duvidosa nos textos quando usado, principalmente, no sentido de “fazer”, “realizar”.
Significados possíveis
Do Latim procedere, que significa “ir adiante, para adiante”, o verbo “proceder” apresenta em torno de dez (isso mesmo, dez!) significados possíveis.
Observe:
Quando acompanhado da preposição “de”, com o sentido de “ter origem; originar-se, derivar(-se)”:
O amor não procede do hábito.
[não se origina do hábito, não vêm do hábito]
Quando acompanhado da preposição “contra”, com o sentido de “instaurar processo”, uma forma pouco usual:
O Governo procederá contra os agiotas.
[instaurará processo contra os agiotas]
Sei que a lei me assiste, mas não quero proceder (contra a empresa).
Quando acompanhado da preposição “de”, com o sentido de “provir; vir”:
Desembarcou no aeroporto a comitiva que procedia da Europa.
[que vinha da Europa]
Esses brinquedos procedem da China.
[vêm da China, têm origem na China]
Nos exemplos acima, o verbo apresentou transitividade indireta, isto é, não foi ligado ao seu complemento diretamente, mas precisou de uma preposição para tanto.
Contudo, ele pode, sim, ser usado em sua forma intransitiva, quando utilizado nos seguintes sentidos:
Ter seguimento; ir por diante; prosseguir, continuar:
A marcha procedeu, dura e incessante.
[prosseguiu, continuou]
As reivindicações procediam, enchendo as ruas.
[prosseguiam, continuavam]
Portar-se, comportar-se, agir:
O fim era proceder de modo que a renúncia da carreira eclesiástica se fizesse cautelosamente, sem dor para a mãe nem escândalo público.
(Machado de Assis, Páginas Recolhidas, p. 151).
[O fim era agir de modo que…]
O homem maduro procede consultando apenas sua consciência.
[comporta-se, age]
“Ser decisivo na prova”; “ser contundente”; “concluir”; “ter cabimento”, “justificar-se”, um significado bem usual:
Os novos dados procedem, não há como refutá-los.
[são verdadeiros]
Seus argumentos não procedem. Acho melhor revê-los.
[não têm cabimento]
“Pôr em prática desígnios ou intentos”; “agir”, “obrar”, como acontece nos artigos da CLT a seguir:
Art. 802, § 1º, da CLT: Nas Juntas de Conciliação e Julgamento e nos Tribunais Regionais, julgada procedente a exceção de suspeição, será logo convocado para a mesma audiência ou sessão, ou para a seguinte, o suplente do membro suspeito, o qual continuará a funcionar no feito até decisão final. Proceder-se-á da mesma maneira quando algum dos membros se declarar suspeito.
Quando a dúvida surge
Sem dúvida alguma, contudo, a maior controvérsia surge quando o verbo é usado no sentido de “levar a efeito; fazer, executar, realizar”. Nesse caso, apesar de ser transitivo indireto, isto é, de precisar da preposição “a” para sua ligação ao complemento, é muito usado como se fosse um transitivo direto, sem a preposição, e isso é considerado um equívoco.
Veja os exemplos do uso correto da expressão, e atente para o uso da preposição em todos os casos:
Art. 886, § 2º, da CLT: Julgada subsistente a penhora, o juiz, ou presidente, mandará proceder logo à avaliação dos bens penhorados.
[a (preposição) + a (artigo) = à]
Art 554 da CLT: Destituída a administração na hipótese da alínea c do artigo anterior, o ministro do Trabalho, Indústria e Comércio nomeará um delegado para dirigir a associação e proceder [...] à eleição dos novos diretores e membros do Conselho Fiscal. [a (preposição) + a (artigo) = à]
Art. 631, parágrafo único, da CLT: De posse dessa comunicação, a autoridade competente procederá desde logo às necessárias diligências, lavrando os autos de que haja mister. [a (preposição) + as (artigo) = às]
E aqui voltamos ao exemplo que deu nome ao texto de hoje: “proceder o exame da prova” ou “proceder ao exame da prova”?
O correto seria, então:
Será necessário proceder ao exame da prova.
E a construção “será procedida a análise pericial”, sem preposição, é possível?
A resposta é não, por um motivo simples, mas não tão claro à primeira vista.
A oração “será procedida a análise processual”, como tantos outros exemplos similares encontrados nos processos, foi construída na voz passiva analítica, utilizando-se, para tanto, a regra básica da mudança da voz ativa para a passiva.
Segundo essa regra, o objeto direto da voz ativa se torna sujeito da voz passiva, e o que era sujeito na voz ativa passa a ser o agente da voz passiva, com o auxílio do verbo “ser”. Isso dá um nó na cabeça, eu sei, mas veja o exemplo a seguir e tudo ficará mais claro:
O magistrado proferiu a sentença. => A sentença foi proferida pelo magistrado.
Até aqui tudo bem.
No entanto - e aqui está o pulo do gato -, é preciso ressaltar que somente os verbos transitivos diretos ou transitivos diretos e indiretos (bitransitivos) têm voz passiva. Isso porque na voz ativa não existe um termo que possa ser o sujeito da voz passiva, como refere o professor José Maria da Costa, autor da coluna “Gramatigalhas”.
O professor cita o caso da oração "O juiz não gostou do depoimento", que não tem voz passiva, pois seria impraticável escrever que “O depoimento não foi gostado pelo juiz”.
Em resumo, a mudança da voz ativa para a passiva nos casos dos verbos de transitividade indireta (lembre-se: os que precisam de preposição) não é possível, como é o caso do verbo “proceder”. Assim, a forma nominal “procedida” está errada.
Para resolver o dilema, é preciso substituir o verbo “proceder” ou a forma “procedida” pelas formas nominais dos verbos “fazer” e “realizar”.
Dessa forma, teríamos:
Em 20 de março, será feita/realizada a análise pericial.
Outro bom exemplo é a oração “A autoridade competente procederá desde logo às necessárias diligências”, do texto da CLT citado acima, cuja transposição poderia ser feita da seguinte forma:
As diligências necessárias serão realizadas desde logo pela autoridade competente.
Linguagem Simples
É sempre importante lembrar que, mesmo que uma formação textual siga padrões corretos, e que seu uso seja defendido e muito encontrado em textos variados da área jurídica, isso não a isenta da possibilidade de causar dúvidas às pessoas que não têm o conhecimento técnico que nós temos.
Coloque-se, por exemplo, no lugar de alguém que você imagina ter conhecimentos jurídicos restritos e pense se essa pessoa teria condições de compreender, sem esforço, o sentido dos textos apresentados acima.
A resposta para isso é simples: muito provavelmente não. A leitura do texto onde constam algumas expressões exige certo esforço e, por isso, ela pode acarretar dúvidas.
Sendo assim, sempre que possível, recomenda-se sua substituição por equivalentes mais simples, de uso mais comum. Com isso, até mesmo você ganhará mais tempo na hora de escrever seus textos. E, como o tempo é um ativo bastante escasso nos dias de hoje, vale a pena investir nessa ideia.
Aliás, veja como os exemplos a seguir ficariam mais fluidos se utilizada uma linguagem menos rebuscada, como sugere o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples:
Resumindo:
O verbo “proceder” usado no sentido de “realizar”, “fazer”, “executar” é classificado como verbo transitivo indireto, ou seja, ele precisa da preposição “a” para sua ligação ao complemento.
Sendo assim, o complemento (objeto indireto) do “verbo proceder” deve ser introduzido pela preposição “a”, observadas as flexões: proceder à coleta, ao exame, às diligências. Então, o correto é “proceder ao exame da prova”. No mundo ideal, seria substituir por “fazer” ou “realizar”.
Não é possível fazer a transposição da voz ativa para a passiva no caso dos verbos de transitividade indireta. Sendo assim, está errado dizer “será procedida a análise pericial”.
No lugar da expressão “procedida”, utilize as formas nominais dos verbos “fazer” e “realizar”. É mais simples e, por não ter erro algum, bem mais bonito.
Por hoje era isso.
Até a próxima!