ENTREVISTA: “Quem sou eu ou quem é você para aceitar ou não a existência de outra pessoa?”, questiona a servidora Bibiana Nodari Borges
Bibiana Nodari Borges tem 35 anos. Porto-alegrense, trabalha no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-RS) desde 2009. Cresceu na Capital gaúcha e morou por quase quatro anos em Taquara, onde iniciou no cargo de técnico administrativo na 1ª Vara do Trabalho. Depois, passou pela 13ª e 14ª Varas de Porto Alegre, Seção de Perícias e Coordenadoria de Agravos e Certidões. Atualmente, é secretária de audiências da 4ª Vara do Trabalho de Porto Alegre.
Dona de três gatos e dois cachorros, tinha uma vida agitada antes da pandemia. Ela classifica como “estranha” a adaptação ao trabalho em casa e às transformações na vida social que foram trazidas pela pandemia, pois prefere sair de casa e conviver com pessoas. “Vivia sempre na rua, cercada de gente e trocando ideias, em restaurantes, bares, teatros e shows, além de coletivos LGBTQIA+”, conta.
Há dois anos e meio, namora a redatora de marketing e dançarina burlesca Emily, que conheceu em um aplicativo de relacionamento. “Marcamos de nos encontrar em um bar e desde então não nos separamos mais”, diz Bibiana.
Na educação e no respeito entre todos, Bibiana vê a saída para esses tempos que classifica como de “insegurança, medo e obscurantismo”. Em 2020, ela passou a integrar o Comitê de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do TRT-RS (Gestão 20/21).
Como é o trabalho no Comitê de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade?
Esse ano fizemos três eventos do mês da diversidade, todos com muito sucesso, e mais a cartilha sobre o tema. Também temos um coletivo que chamamos de Diversidade, que surgiu a partir do Comitê. Sempre conversamos sobre as pautas da comunidade LGBTQIA+ e essas discussões acabam indo para o Comitê.
Também promovemos cursos de formação para os servidores, assim como o Fórum Antirracista, Fórum de Acessibilidade, inclusão e não discriminação de pessoas com deficiência e questões que chegam pela ouvidoria, com relação a questões de gênero, aos servidores negros, LGBTQIA+ e servidores com deficiência.
Não atuamos ainda, especificamente, em questões ligadas a LGBTfobia, no período em que estou no comitê. Acredito que não esteja tudo completamente bem, porque a sociedade é machista e LGBTfóbica. Então talvez faltem denúncias mesmo.
Como você considera o ambiente do Tribunal em relação a essa demanda social?
A gente sabe que a sociedade tem essa fobia ao diferente, ao divergente, e é bom saber que dentro da instituição tem um lugar que vai te ouvir, te acolher e dar suporte. Também acredito que seja uma forma de prevenir que algo venha a acontecer.
O fato de você ter sido criada na Capital, em uma cidade maior, tornou mais fácil seu processo de afirmação junto à família e amigos?
Sim, ser de Porto Alegre facilitou. Eu notei mais a diferença quando saí de Porto Alegre e fui para o Interior, porque fui para lá com a minha namorada, à época. Eu senti mesmo a diferença, em ser notada na cidade - e não por questões positivas.
Eu nem uso o termo descobrir a orientação, para mim foi mais um ‘se dar conta’ mesmo. Meus amigos e amigas já estavam experimentando a sexualidade na adolescência e foi acontecendo comigo de uma forma natural.
Com relação à família, eu nunca cheguei e falei ‘oi, mãe, eu sou lésbica’ ou ‘oi, pai, eu sou lésbica’; foi acontecendo. Eles foram percebendo que aquela era minha namorada e não era só minha amiga. Então foi bem tranquilo, não só com minha família mais próxima, minha mãe, meu pai, meu irmão; mas também com meus tios e minhas tias, sempre tive muita sorte.
Você sofreu algum tipo de violência?
Não sofri nenhum tipo de violência, nada homofóbico na minha frente. Mas sempre havia aquelas coisas que a gente repara, aquele olhar torto, um cochicho...
Eu fui para lá (Taquara) muito novinha, tinha 23 anos, e minha mãe começou a falar: não assume nada, fica mais na tua. Aí eu pensei: não vou assumir de cara. Eu fui muito bem recebida no trabalho. Mas é sempre assim, quando a gente foge do padrão, o medo de não ser bem recebido acontece. As pessoas não aceitam as diferenças, sejam elas quais forem. E o próprio termo aceitar já me soa arrogante. Quem sou eu ou quem é você para aceitar a existência de outra pessoa?
Como tu avalia esse processo que vem acontecendo desde a retirada da comunidade LGBTQIA + das políticas e diretrizes de direitos humanos, em 2019?
Para impedir esse retrocesso é preciso que as pessoas se eduquem, principalmente. É preciso que elas saibam o que as pessoas diferentes de ti passam na vida e o que elas têm a falar.
Temos uma evolução jurídica para a população LGBT e ao mesmo tempo somos o país que mais mata mulheres travestis no mundo. A conta não faz sentido. Precisamos parar com a hipocrisia, se educar e consumir trabalhos de pessoas que são diferentes. O básico é o respeito.
Há pontos positivos que são resultados do que foi feito por muitas gerações lá de trás. Mas hoje em dia é um retrocesso. É um período obscuro, de incertezas e que a gente não sabe o que vai acontecer. Hoje eu sobrevivi, mas amanhã não sei como vai ser quando eu sair na rua.
Já houve situações de medo?
Sim, tive situações em que perdi sono e peso, fiquei com medo de sair na rua, porque começaram essas conversas de dar tiros e eu tenho várias tatuagens com a bandeira do arco íris e eu não escondo quem sou. O medo era constante, não sei se o medo diminuiu ou eu fui me acostumando com ele. Aqui em Porto Alegre, andando com a namorada de mãos dadas na rua, já aconteceu de passar gente de carro, xingar e diminuir a velocidade. Desviamos e fomos por outro caminho. Ao mesmo tempo, essas coisas fazem com que a gente tenha mais vontade de reagir.
Machismo e LGBTfobia têm alguma relação?
Machismo e LGBTfobia estão completamente ligados e, às vezes, se confundem. Em relação ao homem gay é porque não é homem. A mulher lésbica é homem e tem que ser tratada como tal. Com as mulheres trans é pior ainda, como se fosse uma sentença de morte.
Sob a perspectiva de visibilidade/aceitação há diferença entre ser gay e ser lésbica?
Sempre teve mais representatividade masculina, sempre foi dito ‘orgulho gay’. Há um protagonismo do homem, talvez pelo próprio machismo. O episódio de Stonewall*, que ficou conhecido mundialmente, foi iniciado por mulheres transgênero negras, mas ficou conhecido como orgulho gay. Da mesma forma, homens e mulheres trans também não têm visibilidade.
Agora até está mudando e mais pessoas estão dando seu rosto e sua identidade, até como movimento político, mas de fato até aqui a representatividade do homem gay sempre foi muito maior.
* episódio em que a comunidade LGBTQIA+ nova-iorquina - na verdade, protagonizado por mulheres transgêneros pretas, sendo o nome mais conhecido o da travesti Marsha P. Johnson - resistiu às investidas policiais no Bar Stonewall, em 28 de junho de 1969. Desde então, o Dia Internacional do Orgulho Gay, como ficou popularmente conhecido, passou a ser celebrado no mundo todo.
E como levar o tema além da “bolha” e sensibilizar as pessoas que ainda têm preconceitos?
Na minha adolescência não tinha nada na TV e quando tinha era em horários mais tarde. Tudo era escondido e velado. Hoje já temos séries, comerciais, novelas, filmes.
Quem consome conteúdo produzido por pessoas LGBTQIA+ deveria passar adiante, para amigos e para a família. Compartilhar conteúdos, debater o tema, dar livros de presentes e contestar piadinhas “inocentes”, porém recheadas de preconceito, e que violentam os alvos dessas ditas piadas.
O ideal seria que esse tema fosse tratado com naturalidade, que ninguém precisasse “sair do armário”, mas estamos ainda muito longe disso.
Essa geração mais nova é um ponto de avanço muito grande, pois questões de sexualidade e gênero são mais falados e discutidos hoje em dia. Elas vão crescendo com isso sendo desconstruído na cabeça delas e elas são mais livres para viver a sua sexualidade e a sua identidade de gênero na forma como elas querem viver.
É o mais positivo da evolução da pauta LGBT. Falar abertamente sobre o assunto vai transformando a sociedade.