Magistrados do TRT-4 falam sobre aspectos trabalhistas da Carta Testamento deixada por Vargas há 68 anos
"E ATENÇÃO!! Acaba de suicidar-se, em seus aposentos no Palácio do Catete, o presidente Getúlio Vargas!". Foi assim que, há 68 anos, em 1954, também em um 24 de agosto, o Repórter Esso, noticiário radiofônico mais importante do país à época, abalou a manhã dos brasileiros ao anunciar a morte do seu mandatário. Desde então, muitas interpretações têm sido apresentadas sobre o ex-presidente e seu legado nas mais diversas áreas. Algumas delas são francamente divergentes, porém, na esfera trabalhista, parece haver um consenso mais ou menos consistente no sentido de que os avanços foram diversos e estruturantes para o futuro do país.
Em palestra de inauguração do ano letivo da Escola Judicial do TRT-4 no início de 2022, o jornalista Lira neto, biógrafo de Vargas, destacou algumas das realizações do ex-presidente no campo do Trabalho. Como informou o escritor, uma das primeiras medidas do governo Vargas, ainda no ano de 1930, foi a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Houve, também, segundo Lira Neto, um esforço para ampliação das chamadas caixas de aposentadorias e pensões, ao mesmo tempo em que se implementava um modelo sindical em que as entidades eram órgãos consultivos do governo e se subordinavam ao Ministério do Trabalho. Como incentivo à sindicalização, criou-se a regra de que apenas trabalhadores filiados seriam alvo dos benefícios oferecidos pela instituição sindical.
O escritor também destacou a criação das comissões de conciliação, uma espécie de embrião do que seria a Justiça do Trabalho. No mesmo período, foi promulgada a chamada Lei dos Dois Terços, que preconizava a predominância obrigatória, nessa proporção em cada empresa, de empregados brasileiros, com o objetivo claro de impedir que trabalhadores estrangeiros identificados com movimentos de contestação como o anarquismo ou o anarco-sindicalismo pudessem controlar os locais de trabalho.
Lira Neto avaliou que muitas das medidas trabalhistas de Vargas tiveram um objetivo duplo, ou seja, ao mesmo tempo em que traziam direitos e melhorias concretas para a vida dos trabalhadores, também serviam como forma de controle estatal. Um exemplo, segundo o escritor, foi a adoção da Carteira de Trabalho, na qual anotações sobre o histórico da vida profissional dos trabalhadores eram realizadas, permitindo que empregadores sucessivos pudessem avaliar essa trajetória na hora das contratações.
A Constituição de 1934, promulgada pelo governo Vargas, trouxe diversos direitos concretos aos trabalhadores, conforme explicou o palestrante. Dentre eles, estão o estabelecimento do salário mínimo, férias remuneradas, jornada diária de oito horas, descanso semanal, indenização por dispensa sem justa causa, dentre outros. A carta magna também já trazia a previsão de criação da Justiça do Trabalho, formalizada em 1941. A introdução da Consolidação das Leis do Trabalho também ocorreu no mesmo período.
Todas essas iniciativas, no entanto, sofreram fortes resistências, expressas na própria Carta Testamento de Vargas, deixada pelo ex-presidente ao se suicidar. "À campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios", escreveu o ex-mandatário. "Não querem que o trabalhador seja livre", concluiu.
Nestes 68 anos do documento, a Secretaria de Comunicação Social do TRT-4 convidou dois magistrados aposentados do Tribunal para destacar pontos importantes da Carta e discutir sua relevância. Foram eles o desembargador Fabiano de Castilhos Bertolucci e a desembargadora Magda Barros Biavaschi. Leia, a seguir, o depoimento de cada um dos magistrados. Os trechos foram editados, mas obedecem fielmente ao sentido das declarações.
Magda Biavaschi:
"Olhar para a Era Vargas, no meu entendimento, exige duas lentes, para que não se perca a riqueza e a complexidade do período. Um período que transformou o Brasil, um verdadeiro "fazendão" em 1930, na oitava economia do mundo em 1980. A Carta, assinada no dia do suicídio, traz elementos importantes para demonstrar as dificuldades hercúleas dessa caminhada e as forças que atuaram e atuam para impedir essas conquistas. Basta ver que todos os presidentes do século XX e do XXI que tentaram minimamente diminuir as profundas desigualdades brasileiras 'foram suicidados', depostos por golpes, impedidos sem um delito que o justificasse e presos. Trechos da Carta nos dão a impressão que foram escritos hoje. Continuam sendo as mesmas forças a irem contra o sistema público de proteção ao Trabalho. Ora, a atualização do salário mínimo, instituída por Vargas, dinamizou o mercado de trabalho, aumentou os patamares salariais e com isso ampliou o poder de consumo dos trabalhadores. E foi essa mesma política que nos salvou da crise do capitalismo em 2008 no Brasil, enquanto diversos países europeus afundaram. Ao citar a Eletrobras e a Petrobras, já se evidenciava a luta extrema nesses campos estratégicos para a sociedade brasileira. Por isso é uma Carta significativa, que evidencia os nossos grandes desafios, na busca de caminhos que possam superar as nossas dificuldades estruturais e conjunturais."
Fabiano de Castilhos Bertolucci:
"Li uma afirmação de Darcy Ribeiro, se não o maior, um dos maiores cientistas sociais que tivemos, segundo a qual a Carta Testamento de Vargas é o documento mais alto e nobre da história brasileira, o mais comovedor e significativo. E acho que ele tem razão, como em quase tudo que escreveu e disse. A Carta fala sobre múltiplos assuntos e faz referências ligeiras ao Trabalho. Em certa altura, Vargas fala das forças que se uniram para barrar as conquistas dos trabalhadores e conclui que essas forças não queriam que o trabalhador fosse livre. Isso é verdade, porque até Vargas o trabalhador não tinha direitos, não havia nenhuma proteção para o trabalho e ao trabalhador. Foi com Vargas que, além da criação da própria Justiça do Trabalho, foram reconhecidos os primeiros direitos, ou pelo menos consolidados. O direito à sindicalização, a fazer greve, a férias, direitos que nem em países desenvolvidos eram reconhecidos. Salário mínimo, indenização por tempo de serviço, estabilidade (depois abolida), repouso semanal, jornada de oito horas diárias, proteção ao trabalho da mulher, enfim, um grande número de conquistas. Alguns críticos consideram que Getúlio foi paternalista e que essas conquistas deveriam ter sido construídas pelos próprios trabalhadores, mas a verdade é que o contexto dos anos 30 não oferecia condições para essa organização. Getúlio cumpriu papel importante, e, ao contrário do que se diz a todo momento, não há influência da Carta del Lavoro, de Mussolini, na construção da CLT. Tive a oportunidade de assistir uma outra grande personalidade jurídica, o ministro Arnaldo Sussekind, e ele demonstrou, com a sua autoridade de estudioso, que nunca existiu essa influência. É uma falácia, uma mentira propagada por diversos grupos, à esquerda e à direita. E nem falamos do papel de Vargas na industrialização do Brasil. Enfim, quem tem afeição ao Direito do Trabalho, como nós da Justiça do Trabalho, sabe reconhecer esses valores".