Celebração ao Dia da Consciência Negra encerrou com debates sobre religião, resistência e cultura
A programação da tarde do Evento Interinstitucional em Celebração ao Dia da Consciência Negra foi dedicada aos temas da liberdade religiosa, dos movimentos de resistência e da valorização da cultura. O seminário ocorreu na última quarta-feira (19/11), no Plenário do TRT-RS.
A iniciativa integrou as ações da Rede Colaborativa de Direitos Humanos, Equidade de Gênero, Raça e Diversidade, em uma realização conjunta do TRT-RS com o Tribunal de Justiça do Estado do RS (TJRS).
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Liberdade religiosa
No primeiro painel da tarde, o tema foi a liberdade religiosa, com enfoque nas atuações das polícias. Participaram da atividade os painelistas major Michel Ribeiro da Rosa, pela Brigada Militar, o delegado de polícia Vinicius Nahan dos Santos, pela Polícia Civil do Rio Grande do sul, e o ativista social Baba Diba de Iyemonjá, coordenador nacional da Rede de Religiões Afro e Saúde e presidente do Conselho do Povo de Terreiro do Rio Grande do sul.
Em sua participação, o major Michel destacou que a Brigada Militar tem tomado iniciativas em relação à formação dos policiais quanto ao tema das religiões de matriz africana, com participações em cursos e intercâmbio com outras polícias, principalmente da Bahia e de Mato Grosso do Sul. Ele afirmou, também, que a BM está construindo um procedimento padrão para ocorrências relacionadas a religiões em geral. Essa construção, segundo o policial, tem contado com a participação de líderes religiosos, para que as comunidades também manifestem suas insatisfações e seus ensinamentos quanto às suas práticas. Como ações significativas de institucionalização, o major citou a inclusão do tema nas atualizações anuais de formação dos policiais, bem como a criação de instâncias dentro da BM que tratam do assunto.
Já o delegado Vinicius, da Polícia Civil, fez um breve histórico do tratamento do sistema de Justiça a religiões, desde o início da República, quando o próprio espiritismo, chamado de "magia", era criminalizado. As religiões de matriz africana, então agrupadas pelo nome de "feitiçaria", também eram perseguidas. O delegado deixou claro que o sistema de Justiça como um todo realizava esse tipo de perseguição, e não apenas o trabalho policial. Com a criação da Delegacia contra a Intolerância Religiosa, em 2020, o delegado informou que esse tipo de ocorrência tem aumentado, justamente por ter uma instância da polícia especializada no assunto. Injúria e preconceito contra religiões foram os principais delitos apontados desde então. A intolerância religiosa em Porto Alegre, segundo Vinicius, atinge sobretudo mulheres negras de religiões africanas.
Conforme Baba Diba, o que se tem visto é um despreparo dos operadores do Direito para julgar esse tipo de ocorrência. "O Estado tem dificuldade de reconhecer os espaços de terreiro como espaços de cuidado e de acolhimento para todas as pessoas, inclusive as não negras ou pertencentes àquela religião", afirmou. De acordo com o ativista, apesar de o Rio Grande do Sul estar na vanguarda do combate ao racismo religioso, as dificuldades continuam aparecendo, em casos frequentes de intolerância religiosa vindos das polícias, da atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário. "Essa aproximação com os operadores do Direito é fundamental para que modifiquemos esse panorama. O racismo religioso é um dos piores tipos de racismo, porque ataca a nossa essência, a nossa tradição religiosa, a nossa ancestralidade", frisou, após apresentar diversos exemplos de intolerância religiosa, inclusive chancelados pelo Judiciário.
Quilombos urbanos, clubes negros e iniciativas do Judiciário
A programação teve continuidade com o pianel sobre a resistência negra. Com mediação da juíza federal Ana Inés Algorta Latorre, o debate contou com as falas de Fabiane Xavier, liderança do Quilombo do Areal, Fernanda da Silva Oliveira, professora da UFRGS, e Magali Dantas, servidora da Justiça Federal do RS.
Fabiane Xavier, liderança do Quilombo do Areal, relatou os desafios dos quilombos urbanos de Porto Alegre e destacou que a ancestralidade da comunidade está ligada ao território onde sua família e outras gerações viveram. Ela citou a lentidão na titulação dos territórios quilombolas, que afeta a estabilidade das famílias. Nesse sentido, lembrou a remoção da comunidade da Ilhota para a criação do bairro Restinga, que, segundo ela, representou o branqueamento das áreas centrais. Também mencionou o resgate da cultura carnavalesca em seu quilombo, com o Bloco do Areal do Futuro. Ao final, afirmou que as comunidades quilombolas têm demandas distintas, mas perseguem um objetivo semelhante. “Lutamos todas pela permanência, pelo resgate da nossa cultura e por políticas públicas que possam qualificar a vida das pessoas”, declarou.
Fernanda da Silva Oliveira explicou a relevância histórica dos clubes negros no Rio Grande do Sul, desde o final do século XIX. A professora da UFRGS destacou o Clube Floresta Aurora, fundado em 1872, como o mais antigo em atividade no país, e afirmou que esses espaços surgiram porque, embora não houvesse leis de segregação, costumes sociais impediam negros de acessar locais da elite. “Os clubes negros foram criados para ser um espaço seguro e uma continuidade da própria família, mas também para promover a cidadania”, disse. Ao encerrar, defendeu que clubes negros e quilombos são referenciais para um letramento antirracista e afirmou que a população negra também se identifica com as tradições do Rio Grande do Sul: “Amamos esta terra. A gente toma nosso mate, faz nosso churrasco, anda de bombacha, tem um monte de CTG com gente preta. Queremos ser reconhecidos por aqui também”, afirmou.
Magali Dantas destacou a criação do grupo de trabalho em direitos humanos, equidade de gênero, raça e diversidade do TJ-RS . “Desde 2020, ele tem uma atividade muito intensa, que vai se desenvolver paralelamente às ações de memória”, observou a servidora da Justiça Federal do RS. Ela mencionou semanas temáticas na Justiça Federal, como a Semana da Consciência Negra e o Mês dos Lanceiros Negros, e lembrou que o CNJ publicou a Resolução 599/2024 para estabelecer uma política de acesso à justiça para pessoas e comunidades quilombolas. Ao encerrar, defendeu maior representação negra nos espaços de administração do Judiciário e declarou que as galerias de ex-dirigentes dos tribunais ainda mostram a predominância de homens brancos, indicando a necessidade de mudança.
Combate a estereótipos e resgate de trajetórias
O último painel do encontro abordou a importância do planejamento para o combate ao racismo no país e a necessidade de resgatar grandes nomes da literatura negra que foram vítimas do apagamento histórico. O debate contou com as falas do procurador estadual Jorge Luís Terra da Silva e da escritora e conselheira da Associação Negra de Cultura, Lilian Rocha, com mediação da defensora pública estadual Gizane Mendina Rodrigues.
Jorge Luís Terra da Silva defendeu a efetivação dos direitos culturais da população negra e indígena e observou que, embora esses direitos constem na Constituição como fundamentais, ainda não são aplicados de forma plena. O procurador estadual abordou o impacto de preconceitos e estereótipos mantidos por valores do passado e afirmou que o enfrentamento das desigualdades exige desconstruir visões antigas e construir novas percepções. Citando Nancy Fraser, explicou que, além das ações afirmativas, voltadas à igualdade de oportunidades, também são necessárias ações valorativas, que enaltecem o direito à diferença e combatem os estereótipos. Ao encerrar, destacou a necessidade de planejamento contínuo no combate ao racismo. “Não vamos modificar um processo de 300 anos no improviso”, declarou.
Lilian Rocha destacou o apagamento de autores negros na história literária do Rio Grande do Sul e do país. “No Brasil, em torno de 92% dos escritores publicados são pessoas brancas, e 72% são homens, cis, héteros, do eixo Rio-São Paulo e de classe média”, afirmou. Ela resgatou trajetórias como a de José Paulino de Azurenha, cronista portoalegrense do início do século XX que assinava como Leo Pardo, e a de Luciana de Abreu, integrante do Partenon Literário e primeira mulher a realizar um discurso público sobre igualdade de gênero e voto feminino. Também falou sobre o poeta Oliveira Silveira, ligado ao grupo Palmares, que idealizou o 20 de novembro. Na produção contemporânea, mencionou Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Jeferson Tenório, José Falero e Eliane Marques. “Todo dia é uma luta constante, mas estamos em um momento muito bom. É fruto de um trabalho conjunto, de uma coletividade que busca esse lugar que sempre foi nosso, a gente sempre escreveu”, declarou.
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