Em palestra na Escola Judicial, ministro Gilson Dipp argumenta que Lei de Anistia já teria sido revogada
O ministro Gilson Dipp foi o palestrante da última quinta-feira (14/8), no já tradicional "Fim de Tarde" da Escola Judicial do TRT da 4ª Região. Integrante do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e primeiro coordenador da Comissão Nacional da Verdade, instituída em 2012, Dipp falou sobre a ruptura constitucional de 1964 e seus impactos jurídicos e sociais no país. O evento, realizado em parceria com o Memorial da Justiça do Trabalho gaúcha, foi prestigiado por magistrados e procuradores da 4ª Região, além de servidores do TRT-RS, advogados, estudantes e demais interessados pelo tema.
No começo de sua explanação, o ministro afirmou se sentir muito à vontade no TRT-RS, porque advogou durante muitos anos em Porto Alegre, no ramo trabalhista. Ele também avaliou que os juízes do Trabalho sempre foram os magistrados mais avançados em termos sociais, devido ao conteúdo do seu cotidiano e também pelo engajamento.
Na opinião de Dipp, é questionável o fato de que houve ruptura institucional a partir de 1964. Segundo o ministro, algumas das reformas sociais defendidas pelos governos anteriores ao golpe, como a reforma agrária e a reforma tributária, acabaram sendo realizadas pelos presidentes militares, mas com outro enfoque e baseados em fundamentos diferentes. "O que mudou foi a razão ideológica", avaliou.
O ministro informou que no período democrático de 1946 a 1964, mais de 50% das leis editadas foram leis trabalhistas, de cunho social. A partir do Golpe, segundo Dipp, a legislação passou a se preocupar em assegurar o domínio econômico dos empregadores. "A atuação era para impor a vontade do governo nos dissídios coletivos. O objetivo era aparelhar os sindicatos para a ideologia do Golpe", declarou. Com esta conduta, conforme o ministro, os militares queriam impedir a concretização daquilo que chamavam de bolchevismo ou comunismo, que na verdade eram apenas reformas sociais.
Dipp argumentou que a Constituição Federal de 1946 era democrática e trazia diversas garantias mantidas na Constituição de 1967, imposta pela Ditadura Militar. Entretanto, na avaliação do ministro, houve uma legislação de exceção editada com o objetivo de sustentar o Golpe. "Inclusive com mecanismos elaborados por grandes juristas que até viraram ministros do STF posteriormente", ressaltou.
A partir de 1968, com o Ato Institucional nº 5 (AI-5), no ponto de vista de Dipp, o regime abandonou qualquer legislação, seja ela de exceção ou constitucional. "Começaram as torturas, os desaparecimentos, os sequestros. Todos esses atos foram praticados com o conhecimento de altos dirigentes, inclusive dos presidentes da república", frisou. "Ninguém pratica esse tipo de ato sem uma grande estrutura. Estrutura esta que amordaçou o Judiciário, o Legislativo, acabou com garantias como o habeas-corpus", destacou. O ministro salientou, entretanto, que o próprio Poder Judiciário foi conivente com esta estrutura, com raras exceções.
Exemplo de atuação importante do Judiciário, segundo Dipp, foi a retificação da certidão de óbito do jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975 no Doi-Codi de São Paulo. A família pediu que o documento fosse alterado para que constasse como causa da morte os maus tratos sofridos. A ação judicial baseou-se em outro processo, em que foi deferida indenização pela morte. Segundo Dipp, depois de diversos recursos, a certidão foi alterada. "Baseados apenas nesta ação de indenização, conseguimos esta grande decisão. Então, por mecanismos próprios, até mesmo inventivos, podemos obter grandes avanços", frisou.
CNV
Para Gilson Dipp, a Comissão Nacional da Verdade tem a função de reconciliar o país em torno das violações realizadas no passado. Segundo o ministro, para que isto ocorra, o maior objetivo da CNV deve ser fazer com que o Estado brasileiro reconheça que em determinado período estas violações existiram e foram praticadas pelo próprio Estado brasileiro.
O Brasil, como observou Dipp, é o único país do Conesul que ainda não revogou formalmente a sua Lei de Anistia. Mas, para ele, este dispositivo legal já teria sido revogado.
Para embasar sua opinião, Dipp argumentou que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já declarou que o Brasil não poderia manter legislação incompatível com a proteção dos Direitos Humanos. Por outro lado, afirmou o jurista, a Lei da Anistia refere-se a "Crimes políticos e conexos de qualquer natureza", incluindo-se aí torturas, desaparecimentos, abusos sexuais, entre outros. No entanto, segundo o ministro, a Emenda Constitucional nº 26, que teria recepcionado a lei no âmbito constitucional, retirou a expressão "de qualquer natureza".
Na opinião de Dipp, portanto, para que crimes sejam abrigados pela Lei de Anistia, deve ser demonstrada, obrigatoriamente, a conexão com crimes políticos. "Tortura, sequestro, abuso sexual, não são crimes políticos, são crimes comuns, de lesa-humanidade, previstos em diversas Convenções Internacionais de Direitos Humanos", fundamentou, ao destacar que muitos destes Tratados Internacionais têm força de norma constitucional no Brasil. "Mas precisamos dizer isso ao nosso Supremo, que em muitos casos é antiquado, conservador, possui uma ideia errada de soberania nacional", criticou.
Dipp manifestou, ao finalizar sua palestra, o desejo de que a CNV consiga seu objetivo final. "Espero que no relatório da CNV possa o estado brasileiro declarar que é responsável por atos de violação de Direitos Humanos cometidos em determinado período. A democracia não pode se consolidar sem isso. É o menos que se pode postular", concluiu.