Noutros tempos: Os carvoeiros e as minas de carvão
“[...] E muito embora se sinta incapaz para o seu trabalho, vem, qual herói, fazer valer o seu direito ao emprego, a sua estabilidade, sujeitando-se ao agravamento de sua moléstia e até mesmo à morte, para não morrer de fome junto a sua família. É o dilema do operário portador de moléstia profissional: ou morre no trabalho ou morre de fome.”
O trecho acima, retirado de uma sentença de Carlos Alberto Barata Silva, um dos primeiros juízes e presidentes do Tribunal, é parte do quinto processo que tramitou na Junta de Conciliação e Julgamento de São Jerônimo, em 1946.
O processo traz a história de João Valdez, trabalhador por duas décadas nas minas de carvão da Companhia de Estrada de Ferro de São Jerônimo, onde começou a trabalhar aos 15 anos de idade. João, aos seus parcos 36, viu-se acometido de uma grave doença profissional pulmonar denominada antracossilicose, que geralmente acomete trabalhadores expostos ao carvão e à poeira.
Sentido-se incapaz para desempenhar suas atividades na mina, João Valdez deixou de trabalhar, movendo ação na justiça comum por acidente do trabalho/doença ocupacional contra a empresa. Recebeu indenização mínima e, posteriormente, viu seu pedido de aposentadoria por invalidez ser negado pelo órgão previdenciário.
Impossibilitado de viver e sustentar sua família sem o trabalho, requereu à ré que fosse readaptado em serviço mais leve, o que lhe foi negado, sob a alegação de que a ré nada mais lhe devia e que, além do mais, havia ocorrido o abandono de emprego, atitude que, à época, era considerada gravíssima.
A João Valdez, então, restou mover ação trabalhista contra a ré, na qual requereu indenização ou reintegração ao emprego. O feito foi julgado totalmente procedente, decisão que inclusive foi mantida em segunda instância, no sentido de reintegrar o autor ao trabalho.
Esse processo de João Valdez, contudo, é apenas um dos vários que tramitaram na JCJ de São Jerônimo com a mesma temática. Aliás, os primeiros autos que deram origem ao Acervo do Memorial da Justiça do Trabalho no Rio Grande do Sul vieram de lá, à época fadados ao descarte. A grande maioria dos processos desse conjunto aborda a vida laboral dos trabalhadores das minas de carvão.
O carvão tinha grande significado econômico à época, notadamente durante o período da Segunda Guerra Mundial, com as restrições de importações, pois alimentava a ferrovia e abastecia de energia elétrica a cidade de Porto Alegre. Nos anos 1940, a região de São Jerônimo abrigava quase 7 mil mineiros, formando uma das maiores concentrações de trabalhadores do País.
No mesmo período, históricas greves de mineiros encabeçaram a luta pelo cumprimento da recente legislação protetiva. O fim da guerra trouxe a lenta derrocada do setor, com a importação de produto estrangeiro e com a substituição do carvão por alternativas mais econômicas. A instalação da então JCJ de São Jerônimo, a segunda a ser instalada no Interior do Estado, em 1945, se enquadrava nesse contexto.
A documentação obtida sobre a Junta nesse período, inclusive, impulsionou o Memorial a promover duas exposições sobre o assunto, as quais foram enriquecidas com desenhos feitos pelo artista plástico Danúbio Gonçalves, natural de Bagé/RS.
Danúbio doou ao Memorial quatro cadernos de desenhos que retratam o cotidiano dos trabalhadores de mineração de carvão nas Minas do Butiá. Segundo o próprio artista, este seria um dos raros documentos iconográficos dos mineiros em atividade, pois logo em seguida as minas subterrâneas foram desativadas. Inclusive, ele relata que apenas era autorizado a descer às minas sem o material de desenho, e que no retorno é que fazia os esboços. Os desenhos, na técnica grafite sobre papel, alguns retomados com o acréscimo da(s) cor(es), são minuciosos estudos feitos pelo artista, com base em sua memória visual, para a composição da série xilográfica Mineiros de Butiá.
Mas não são apenas processos e desenhos que compõem o acervo do Memorial sobre a carvoaria, tamanha a importância do ramo para a economia e a história do Rio Grande do Sul e do País. O trabalho dos carvoeiros aparece também em algumas das fotografias do acervo fotográfico pessoal da desembargadora aposentada Maria Guilhermina Miranda, doado ao Memorial. As fotos retratam uma visita feita em 1976 pela então juíza do Trabalho a uma mina de carvão em Criciúma-SC, ocasião em que foi indicada para atuar na JCJ daquela cidade. Era praxe na localidade a realização de visitas da Junta de Conciliação a minas de carvão, fábricas, indústrias têxteis e outros locais de trabalho da jurisdição. À época, Rio Grande do Sul e Santa Catarina formavam juntos o TRT da 4ª Região.
Segundo a magistrada, a visita teve o objetivo de tomar conhecimento das características do local e das condições de trabalho nas minas. Os trabalhadores, refere, consideravam motivo de grande orgulho trabalhar no ambiente subterrâneo, ainda que isso lhes causasse grandes e irremediáveis prejuízos à saúde. Ali viu, no semblante dos carvoeiros, a expressão de dor por uma vida dura, cheia de dificuldades, traduzida comumente em um envelhecimento precoce. Não era a expressão de João Valdez, tampouco o do “herói” de Barata Silva, quiçá a dos observados por Danúbio Gonçalves, mas era a mesma expressão de tantos outros trabalhadores que, até hoje, ainda passam por dificuldades iguais ou similares, sujeitos a condições insalubres, perigosas, facilitadoras de doenças profissionais e acidentes de trabalho.
Gravadas no Acervo do Memorial estão essas histórias. Se quiser saber um pouco mais sobre elas, venha conhecer. E se sabe algo mais sobre o assunto, compartilhe conosco.