Perseguidos pelo Regime Militar, advogado Carlos Araújo e desembargador Carlos Kurtz relatam suas experiências em evento da Escola Judicial e do Memorial
O Memorial do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS), em parceria com a Escola Judicial do TRT gaúcho, promoveu, nessa quinta-feira (6/11), o Fim de Tarde "Golpe Militar de 1964 e seu Impacto no Mundo do Trabalho". O evento contou com as palestras de Carlos Franklin Paixão Araújo, advogado trabalhista e preso político da Ditadura Militar, e Carlos Renan Kurtz, desembargador aposentado do TRT-RS, que teve seus direitos políticos cassados pelos militares. As explanações ocorreram no auditório Ruy Cirne Lima da EJ, que esteve lotado com a presença de juízes e desembargadores da 4ª Região, procuradores do Trabalho, advogados, servidores, estudantes e demais interessados pelos temas tratados.
Os palestrantes foram saudados pela presidente do TRT-RS, desembargadora Cleusa Regina Halfen, que agradeceu a eles pela disposição em falar sobre temas tão importantes. A desembargadora afirmou estar muito satisfeita pela realização do evento. "As personalidades a serem ouvidas são figuras de renome no Estado, com histórias marcantes de atuação política nos anos em que se sofreu a crueldade da Ditadura Militar", afirmou. "Eles padeceram com as agruras do regime, tiveram seus direitos políticos cassados, mas lutaram e ajudaram a construir a redemocratização do país". A magistrada também elogiou os integrantes do Memorial da Justiça do Trabalho gaúcha e à EJ pela promoção do encontro.
Ao falar em nome da Comissão Coordenadora do Memorial, a juíza do Trabalho Anita Job Lübbe avaliou que a preservação da memória ainda é uma novidade em um país jovem como o Brasil. Entretanto, para a juíza, a memória deve ser cada vez mais resgatada e respeitada, porque a preservação é um dever do Estado e um direito de todos. "Como dizia Mário Quintana, recordar é fazer passar de novo pelo coração", finalizou.
O poder e o mundo do Trabalho
Para o advogado Carlos Araújo, antes de abordar a questão do Trabalho no Regime Militar, seria necessário falar sobre o poder no mundo capitalista. Na avaliação do palestrante, Getúlio Vargas, ao assumir o poder, queria implementar a democracia social no Brasil, em que o Estado seria o indutor do desenvolvimento e as forças sociais elaborariam as regras do poder. Esta tese, segundo Araújo, foi contraposta pelas elites paulistas em 1932, que pensavam que o capitalismo brasileiro deveria ser gerenciado pelo capitalismo internacional, que tinha mais dinheiro e conhecimento para tanto. "Estas teses continuam prevalecendo até hoje. Nada mudou", afirmou.
A Justiça do Trabalho, criada durante o governo Vargas, é um dos pilares do capitalismo social que se formava, do ponto de vista de Araújo. Outros aspectos importantes seriam a legislação trabalhista e o fortalecimento do sindicalismo.
Na análise do convidado, o golpe militar de 1964 foi resultado dessas duas visões de capitalismo em choque. O primeiro dos pilares atacados pelo novo regime, conforme o advogado, foi o sindicalismo, com intervenções diretas nas instituições. "Na Justiça do Trabalho houve cassações, perseguições, medo. Queriam retirar a autonomia dos tribunais", afirmou. "E quanto à legislação, a primeira coisa que eles atacaram foi o que eles mais odiavam, a garantia do emprego, substituindo a antiga estabilidade decenal pelo FGTS", explicou. Para ele, o capitalismo conservador está sempre vigilante. "Agora querem acabar com a Justiça do Trabalho por meio da terceirização selvagem. Não haverá mais emprego direto, apenas empresas laranjas, o que dificulta a execução. Acaba com a Justiça do Trabalho", concluiu.
Desembargador anistiado
Ao iniciar sua participação, o desembargador aposentado Carlos Renan Kurtz observou que era uma grande coincidência estar junto com Araújo, já que o advogado de Porto Alegre ajudou o também advogado, em Santa Maria, a fazer as defesas dos seus clientes na segunda instância da Justiça do Trabalho na capital. "Muitas vezes ganhávamos na primeira instância, mas ficava difícil fazer a defesa dos clientes em Porto Alegre. Então o escritório do Araújo nos ajudava. Depois fomos colegas também na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Ele foi sempre uma liderança excepcional e por isso é muito bom estar com ele aqui hoje", salientou.
Como explicou o palestrante, ele era advogado trabalhista em Santa Maria, no Sindicato dos Ferroviários. Com a Ditadura Militar, segundo Kurtz, todos os órgãos públicos sofreram intervenção, e os sindicatos também. "Ganhávamos as ações na Justiça, mas os militares ameaçavam os ferroviários de demissão caso recebessem o que foi reconhecido como direito. Muitas vezes eles desistiam para não perder o emprego", relembrou.
Conforme o relato de Kurtz, ele próprio foi vítima do Regime Militar. Prestou concurso para juiz do Trabalho em 1967 e, por influência direta do Gabinete Militar da Presidência da República, foi preterido diante de outros nomes que também foram aprovados no concurso. Ganhou, por unanimidade no STF, o direito à nomeação, mas para não cumprir a determinação judicial, os militares cassaram seus direitos políticos em 1969. Pelos próximos dez anos, não pôde se candidatar a nenhum cargo e nem assumir sua função no serviço público. "Eu, juntamente com Olga, minha companheira, sofremos muitas perseguições por termos passado no concurso. Ela assumiu, mas precisou renunciar logo depois", recordou. Segundo o convidado, a partir da Lei da Anistia, ele buscou reparação ao dano causado por ter sido negado o exercício do cargo de juiz do Trabalho. Esta reparação, entretanto, até hoje não está completa, embora tenha sido reconhecido o direito em 2002. Inclusive para receber a carteira funcional de magistrado Kurtz precisou entrar com ação na Justiça. "Não é nada fácil a busca pela reparação. Tem gente que pensa que é só pedir e o dinheiro surge. Hoje eu sou um desembargador federal do Trabalho anistiado", declarou.