Abandono afetivo capaz de gerar dano moral
Resta patente que amar é uma faculdade e que nenhuma ciência humana pode obrigar um pai a amar seus filhos. Ponto incontroverso.
Entretanto, recentemente o STJ, através da ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma decidiu ser possível exigir indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo pelos pais. Tal decisão decorreu de uma demanda na qual a autora alegou ter sofrido abandono material e afetivo durante a infância e adolescência.
Ocorre que as obrigações concernentes à paternidade nunca foram cumpridas. A ausência de amor não se indeniza, mas e o cuidado, e o dever de prover subsídios para uma educação primordial? Neste sentido seguem trechos do voto da Ministra Nancy: “Contudo, não existem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar, no direito de família”. “Sob esse aspecto, indiscutível o vínculo não apenas afetivo, mas também legal que une pais e filhos, sendo monótono o entendimento doutrinário de que, entre os deveres inerentes ao poder familiar, destacam-se o dever de convívio, de cuidado, de criação e educação dos filhos, vetores que, por óbvio, envolvem a necessária transmissão de atenção e o acompanhamento do desenvolvimento sócio-psicológico da criança”. “E é esse vínculo que deve ser buscado e mensurado, para garantir a proteção do filho quando o sentimento for tão tênue a ponto de não sustentar, por si só, a manutenção física e psíquica do filho, por seus pais – biológicos ou não”. “Nessa linha de pensamento, é possível se afirmar que tanto pela concepção, quanto pela adoção, os pais assumem obrigações jurídicas em relação à sua prole, que vão além daquelas chamadas necessarium vitae”. “O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes”.
De acordo com a ministra, o vínculo – biológico ou autoimposto, por adoção – decorre sempre de ato de vontade do agente, acarretando a quem contribuiu com o nascimento ou adoção a responsabilidade por suas ações e escolhas.
À liberdade de exercício das ações humanas corresponde a responsabilidade do agente pelos ônus decorrentes.
Ao conceber uma criança a pessoa assume uma responsabilidade pelo ato em si assim como tudo da vida. Amá-la não concerne ao Direito e sim a campo um metajurídico, filosófico, psicológico ou religioso.
Entretanto, cuidar para que se torne uma pessoa de bem, para que se sinta acolhida no seio familiar, protegida e para que estude é sim uma responsabilidade, cujo descumprimento pode sim ser alvo de ressarcimento.
Ademais, o cuidado é sim um bem jurídico apreciável eis que constitui em fator essencial – e não acessório – no desenvolvimento humano. Tanto é uma realidade que o cuidado é um bem jurídico que Tânia da Silva Pereira – autora e coordenadora, entre outras, das obras Cuidado e vulnerabilidade e O cuidado como valor jurídico – acentua o seguinte: “O cuidado como ‘expressão humanizadora’, preconizado por Vera Regina Waldow, também nos remete a uma efetiva reflexão, sobretudo quando estamos diante de crianças e jovens que, de alguma forma, perderam a referência da família de origem (…). A autora afirma: ‘ o ser humano precisa cuidar de outro ser humano para realizar a sua humanidade, para crescer no sentido ético do termo. Da mesma maneira, o ser humano precisa ser cuidado para atingir sua plenitude, para que possa superar obstáculos e dificuldades da vida humana.
Portanto, aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é um dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos.
Neste sentido, a fim de buscar tentar reparar a dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno ou materno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, o Estado pode sim, via Poder Judiciário determinar o pagamento de uma indenização de fundo pecuniário seja no afã de punir aquele que age irresponsavelmente ao ter um filho e dele se descuidar, seja no afã de reparar a dor moral, que aliás, dificilmente findará um dia, tamanho os efeitos psicológicos decorrentes desse tipo de abandono.
São os princípios da paternidade responsável e da afetividade buscando resguardar um bem jurídico desconhecido para muitos: o dever de cuidado.