''A cultura que aceita o trabalho infantil é o maior entrave do combate ao problema'', afirma ministra do TST em seminário na Escola Judicial
Na última sexta-feira (30), foi realizado na Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região o seminário “Justiça e Trabalho Infantil: Uma questão de Direitos Humanos”. O evento foi promovido pelo TRT4 em parceria com a Amatra IV e a Comissão para Erradicação do Trabalho Infantil da Justiça do Trabalho. Participaram magistrados, servidores, promotores e outros convidados.
Pela manhã, o seminário contou com a presença da ministra Kátia Magalhães Arruda, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que proferiu a conferência: “Erradicação do Trabalho Infantil no Mundo”. A convidada apresentou dados expressivos sobre o trabalho de crianças e adolescentes. Ressaltou, entretanto, que os números não são suficientes para mostrar a realidade. Citando a filósofa Ana Harendt, questionou se a situação das crianças brasileiras não pode ser vista como o resultado de um processo de banalização do mal. A ministra considera como maior entrave para o combate ao trabalho infantil a questão cultural, que muitas vezes legitima ou naturaliza o ingresso precoce de crianças e adolescentes no mercado de trabalho.
Para Kátia Arruda, a discussão sobre o trabalho infantil implica uma reflexão sobre o tipo de democracia que queremos para o país. Os dados mais recentes, de 2011, apontam um contingente de 3,6 milhões de crianças e adolescentes nessa situação no Brasil, o que representa 8,2% do total da população na faixa etária. A ministra ressaltou que há uma confusão entre causas e consequências quando se trata do problema. A pobreza, a exclusão social, o analfabetismo e a baixa escolaridade são fatores que levam ao trabalho infantil, mas que também se reproduzem por sua influência.
A ministra ainda apresentou um dado estatístico capaz de surpreender o senso comum: 40% dos atuais trabalhadores infantis não estão na linha da pobreza. Ou seja, muitas crianças e adolescentes buscam o trabalho não para sair da miséria, mas pela necessidade de pertencimento social, gerada pela cultura do consumismo. É uma escolha que prejudica o desempenho escolar e traz graves consequências na vida adulta.
O trabalho infantil é denunciado pela ministra como um fator de exclusão social. Entre os motivos estão os riscos à integridade física do trabalhador precoce e os prejuízos que a atividade acarreta à sua educação. De 2007 a 2011, foram registrados mais de cinco mil acidentes graves de trabalho envolvendo crianças. Além de a estatística ser proporcionalmente superior aos acidentes que envolvem adultos, muitos casos resultam em mutilações.
A ministra também destacou que, do contingente de trabalhadores infantis, 5 a 10% estão fora da escola. Ela apontou que, num primeiro momento, esse número pode não parecer tão elevado. Mas ressaltou que 90% desses trabalhadores têm nível de escolarização inferior. “A defasagem escolar é enorme. Muitos não chegam ao nível médio, e é muito raro chegarem ao nível superior”, concluiu.
A ministra Kátia Arruda, por diversos momentos, criticou a cultura que tenta justificar o trabalho infantil. Um dos pontos que combateu foi a ideia equivocada de que o ingresso precoce no mercado de trabalho pode trazer melhores salários no futuro. As estatísticas apontam que a perspectiva financeira de um trabalhador infantil é baixa. Pessoas que começam a trabalhar com menos de 14 anos têm renda abaixo de mil reais na fase adulta. Para as que começam antes dos 9 anos, a renda cai para menos de 500 reais. “Quanto antes se começa, pior a renda”, afirmou.
Quanto ao perfil do trabalhador infantil brasileiro, os números apontam um presença majoritariamente masculina. No entanto, os dados se alteram no trabalho doméstico, onde predominam as meninas. O uso de crianças no trabalho doméstico é outro ponto controverso. É comum ser difundida a idéia de que o empregador leva crianças mais pobres para sua casa para ajudá-las. “Mas o resultado é que a criança é que ajuda: a lavar, a passar, a limpar vasos sanitários”, denunciou a ministra. O problema pode ser observado mesmo em estados com economia desenvolvida. No Rio Grande do Sul, há 25 mil crianças no trabalha doméstico.
A convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) elenca as piores formas de trabalho infantil, e propõe sua proibição e imediata eliminação por parte dos países membros. São elas: o trabalho escravo ou análogo à escravidão, a exploração sexual, o uso para atividades ilícitas (como o tráfico de drogas), o uso em conflitos armados, e os trabalhos que oferecem risco à saúde. “No Brasil, só não existem denúncias para o caso de uso de crianças em conflitos armados. Em todas as demais atividades, os números são alarmantes”, afirmou a ministra.
Para Kátia Arruda, a maior dificuldade é romper o senso comum que legitima a exploração. Contestou três argumentos que são utilizados por quem defende o trabalho infantil . O primeiro diz que é melhor a criança trabalhar do que roubar. “Trata-se de um falso dilema, porque exclui a hipótese correta: estudar”, afirmou. O segundo afirma que trabalhar educa o caráter. Mas o trabalho infantil afasta as crianças da escola, e acarreta uma defasagem na educação que serve de base para o trabalho escravo. “De que caráter estamos falando?”, questionou. O terceiro afirma que trabalhando a criança aprende seu ofício. No entanto, majoritariamente as atividades são baseadas na exploração e não apresentam perspectivas de crescimento.
A ministra considerou a indiferença com relação ao tema algo perigoso. Concluiu a palestra negando o discurso de que é impossível modificar essa realidade: “A história é uma construção, podemos e devemos contribuir para essa mudança”.
As piores formas de trabalho Infantil e a vulnerabilidade dos menores com deficiência
A segunda parte da manhã iniciou com a participação do desembargador do TRT9 (Paraná), Ricardo Tadeu Marques da Fonseca. O desembargador é deficiente visual e dedicou sua palestra a defender uma maior integração dos portadores de deficiência na sociedade. Considerou revolucionária a convenção da ONU sobre o direito das pessoas com deficiência, porque o texto adota um conceito político, e não um viés paternalista ou clínico. Criticou a postura de empresas que criam empecilhos para não cumprir a lei de cotas, ressaltando que qualquer tipo de exclusão em razão de deficiência é discriminação. Considerou obrigação das empresas criarem condições de acesso para o deficiente, já que a recusa de adaptação razoável do meio também é discriminação.
Ricardo Tadeu declarou que a deficiência tem que ser considerada como algo inerente à diversidade humana. Afirmou que as cidades ainda são hostis e não acolhem os portadores de deficiência. Criticou também a postura do judiciário, já que os surdos sequer tem acesso à jurisdição: “Se dizer o direito é nossa missão, não o fazer em libras é negar o direito a 5 milhões de brasileiros”, afirmou. Lembrou, ainda, que a educação de crianças com deficiência deve ser feita nas escolas regulares, para que desde cedo as pessoas aprendam a conviver com as diferenças. “Precisamos aceitar na diversidade o fato de que essa é a maior riqueza da condição humana”, concluiu.
A segunda painelista da atividade, Marinalva Cardoso Dantas, auditora-fiscal do trabalho em Natal (RN), defendeu que a sociedade deve mudar sua atitude com relação ao trabalho infantil, e que os fatores culturais que legitimam a exploração devem ser combatidos. Afirmou que o trabalho de fiscalização por vezes esbarra na família. Muitas crianças que participam do bolsa família, frequentando a escola em turno integral, chegam em casa e são colocadas pelos pais para trabalhar durante a madrugada. O desgaste prejudica o desempenho nos estudos. “É uma barreira enorme lutar contra a ignorância”, disse Marinalva. Durante a palestra, exibiu imagens mostrando a exploração de crianças nos mais diversos tipos de trabalho. Reconheceu que as fotos são chocantes, mas que devem ser veiculadas para que a sociedade se sensibilize e reconheça a gravidade do problema.
O painel da manhã se encerrou com a participação do procurador do trabalho Veloir Dirceu Fürst. Ele citou como exemplo de exploração o uso de mão de obra infantil na cultura do fumo, com todas as graves consequências que isso gera para a saúde dos envolvidos. Veloir Fürst integra a Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes. Declarou que o combate é feito com medidas de repressão, prevenção e conscientização. Encerrou o painel fazendo referência ao lema utilizado em uma campanha de conscientização do Ministério Público do Trabalho: “Temos que assegurar à criança o direito de brincar, estudar e viver. Trabalhar, só quando crescer”.