Especialista defende cultura do respeito como caminho contra o assédio
Com uma fala sensível, contundente e permeada de experiências pessoais e profissionais, a psicóloga e doutora em Medicina pela USP Lis Soboll protagonizou um momento de muita reflexão no encerramento do primeiro dia do 28º Encontro Anual de Gestores do TRT-RS.
O painel, mediado pela diretora da Secretaria de Gestão de Pessoas, Maria Augusta Kinnemann, a Guta, propôs uma abordagem sobre o enfrentamento ao assédio nas instituições públicas: menos centrada na punição e mais orientada à prevenção, à escuta e ao cuidado.
Quem é Lis?
Lis Soboll é palestrante, autora de 11 livros e uma das pioneiras no Brasil na abordagem do assédio e da saúde social nas organizações. Tem mais de 25 anos de experiência em programas de prevenção em saúde mental e enfrentamento do assédio em ambientes corporativos públicos, tendo colaborado com instituições como TST, TCU e MPT.
É psicóloga, doutora em Medicina pela USP e pós-doutora pela Universidade de Lisboa. Atua como docente na UFPR e na USP, onde orienta pesquisas sobre o tema. Entre 2018 e 2023, foi assessora no Gabinete da Reitoria da UFPR, onde criou e coordenou o Programa ConVida, voltado à promoção do bem-estar para um público de 40 mil pessoas.
Rachaduras da vida
“É muito bom que vocês estejam encorajados a olhar para as questões do assédio, porque são rachaduras que podem acontecer na nossa trajetória profissional. Mas o assédio é só uma delas. As rachaduras podem acontecer em várias áreas da vida”, alertou Lis logo no início da sua fala.
Ela compartilhou momentos delicados de sua trajetória pessoal, como o episódio em que, grávida e sobrecarregada pelo trabalho, viu sua filha correr para os braços da babá após uma apresentação escolar. “Isso mexeu muito comigo. Eu pensei: o que eu estou fazendo da minha vida? Eu queria tanto esses filhos...”, contou, com os olhos cheios de lágrimas.
Vulnerabilidade na liderança
A pesquisadora destacou que os gestores ocupam um lugar especialmente vulnerável na estrutura institucional, pressionados tanto por demandas superiores quanto pelas necessidades das equipes. “Vocês estão naquele sanduíche que precisa dar conta de tudo. E agora vem alguém dizer que você está praticando assédio? Fica difícil, né? A conta não fecha”.
Dados e realidade
Lis também trouxe dados contundentes. Segundo pesquisa recente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 56% das pessoas que trabalham no Judiciário já relataram ter sofrido algum tipo de assédio – sendo 88% desses casos classificados como assédio moral. E 78% das vítimas desenvolveram algum tipo de problema de saúde mental.
Ela ironizou, com amargura, a reação comum diante desses números. “Vocês devem estar pensando: ‘poxa, chamaram para uma palestra sobre assédio e parece que estão dizendo que a gente é que está assediando’”, disse, arrancando risos nervosos da plateia. “Mas está tudo armado para que vocês pratiquem assédio. Sabe por quê? Porque somos todos humanos”.
Assédio estrutural
Lis destacou que o assédio institucional muitas vezes não nasce de má-fé, mas de contextos de pressão, insegurança e sobrecarga. “Quantas horas você precisaria por dia para dar conta de tudo o que precisa fazer? Eu fiz esse exercício. Se tivesse mais 24 horas, eu faria igualzinho ao que faço hoje”.
Autocuidado e esgotamento
Um dos momentos mais impactantes foi a exibição de um vídeo satírico, no qual um personagem fictício descreve sua rotina perfeita de autocuidado, produtividade e gratidão – até o esgotamento final. Após a exibição, Lis comentou: “A gente ri pra não chorar. Estamos tentando atender a todas as metas do CNJ e ainda às metas que inventamos para nós mesmos. E estamos adoecendo”.
Sofrimento e silêncio
Ela criticou também a cultura do silêncio e da solidão que cerca o assédio. “Vivemos um sofrimento compartilhado, mas enfrentado na solidão. E esse é o grande problema hoje”. Para Lis, embora os canais de denúncia sejam importantes, não bastam para transformar o ambiente institucional. “Trabalho há 25 anos com isso e posso dizer: a denúncia, sozinha, não resolve. Muitas vezes, só gera mais feridas. O que precisamos é de prevenção, intervenção precoce, práticas restaurativas”.
Cultura do respeito
A pesquisadora enfatizou a importância de construir uma “cultura do respeito” dentro das instituições. “Vocês, gestores, definem o que é permitido ou não no microambiente. Quando manda mensagem às nove da noite no grupo de trabalho, mesmo que bem intencionado, o que você está dizendo sobre o que é esperado ali?”
Feedbacks reais
Lis ressaltou que dar feedbacks eficazes não depende de fórmulas simplistas ou de frases prontas. “Aconteceu uma coisa. Mas não se ofenda. Já perdeu”, ironizou, sobre abordagens frias ou mecânicas. “Esse modelinho básico de dizer duas coisas boas e uma ruim no meio não funciona. O que funciona é olho no olho, é de verdade: ‘Você sabe que eu conto com você aqui, que seu trabalho é importante e que temos um acordo de respeito’.”
Ela defendeu que, diante de um comportamento inadequado, o feedback precisa deixar claro o impacto na equipe: “A equipe está incomodada com tal comportamento seu. Eu conto com você para que isso não aconteça mais”.
Compromisso coletivo
Para Lis, o diálogo não é só correção, mas reforço do compromisso coletivo: “Se antes algo ‘não tinha problema’, era para quem? Agora o nosso acordo é de respeito. Se funcionava na sua casa, aqui a margem é outra”.
A partir desse entendimento, ela reforçou a importância de assumir responsabilidade — tanto para quem dá quanto para quem recebe o feedback — e de registrar acordos em equipe: “Vamos combinar? Como é que estão os combinados da sua equipe? Tem gestor que nunca faz reunião, nem quando precisa. E tem outros que fazem reunião até quando não precisa. Vamos recombinar, inclusive o respeito. Como é que se faz prevenção de assédio na sua equipe? É no primeiro sinal de desrespeito. Você chama e diz: ‘Aqui temos um acordo de respeito’”.
Solidão da liderança
Lis também destacou a solidão como um dos principais desafios da liderança: “Você sai pra chorar no banheiro, dá umas cinco voltas na quadra antes de chegar em casa… não fique sozinho. O pior lugar para enfrentar transtornos mentais é na solidão. Busque ajuda. Busque um do outro. Vamos conversar”.
Redes de apoio
Ela incentivou os gestores a construírem redes de apoio mútuo: “Saiam daqui com a meta de ter pelo menos duas relações mais próximas, com quem vocês possam contar no meio da tempestade. A solidão é um baita problema da gestão. Se a gente só enfrentar isso, já mudou muita coisa”.
Construindo pontes
A especialista contou que sua experiência como gestora universitária lhe mostrou que, mesmo em estruturas resistentes, é possível construir pontes: “Quando entrei no cargo, ouvi que ali ‘não funcionava assim’. Mas fui insistindo no diálogo. As pontes que consegui construir me renovaram o sentido, a segurança, a confiança. E não foi sozinha. Foi com todo mundo também”.