Trabalho forçado e degradante ainda desafia a América Latina, alertam especialistas em seminário internacional no TRT-RS
O segundo dia do Seminário Internacional “Construindo Pontes: Trabalho e Justiça no Mercosul”, que teve início na quinta-feira (10/4), começou com um olhar crítico sobre práticas que ainda perpetuam o trabalho forçado e degradante em diversos países da América Latina. O evento, realizado no Plenário Milton Varela Dutra, no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-RS), reúne especialistas do Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Peru.
Com mediação da ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Delaíde Miranda Arantes, o painel “Trabalho Forçado e Degradante – Desafios Contemporâneos” trouxe reflexões sobre a responsabilidade das empresas e o papel do Estado na promoção do trabalho decente. A ministra é ouvidora-geral e coordenadora do Comitê de Prevenção e Enfrentamento da violência, Assédio e Discriminação do TST e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT).
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Cadeias produtivas e responsabilidade empresarial
Abrindo as apresentações, o auditor-fiscal do trabalho Renato Bignami, tratou do tema “Cadeias Produtivas e Trabalho Decente: Conectando Direitos Humanos e Responsabilidade Social”.
Bignami apresentou uma análise sobre os desafios contemporâneos nas cadeias produtivas, com foco na conexão entre direitos humanos e responsabilidade social das empresas. O auditor-fiscal concentrou a sua fala na necessidade urgente de repensar o papel das organizações na garantia de condições dignas de trabalho, especialmente em um cenário de globalização e fragmentação da produção.
Ele destacou o contexto atual, dizendo que “vemos um enfraquecimento de sindicatos e instituições públicas de proteção ao trabalho, mas, ao mesmo tempo, um fortalecimento da sociedade civil organizada”. Segundo o painelista, esse ambiente demanda novas abordagens para responsabilizar empresas pelos impactos trabalhistas ao longo de suas cadeias.
Quem se beneficia do trabalho?
Ele apresentou duas teses principais. A primeira é a clássica, baseada na responsabilidade de quem registra a mão de obra. A segunda, mais recente e inspirada na doutrina europeia, trata da responsabilidade de quem se beneficia economicamente do trabalho, mesmo que indiretamente. “Não estou falando de terceirização, estou falando de algo que vai além da terceirização”, reforçou.
Bignami citou um caso julgado na Califórnia, em que um consumidor processou uma grande marca de roupas esportivas dos Estados Unidos, conhecida por não produzir diretamente seus produtos, mas terceirizar a produção globalmente. A empresa fazia campanhas alegando promover bem-estar e proteção infantil, mas foi acusada de encobrir práticas trabalhistas abusivas em sua cadeia. “A empresa passou a perceber que responsabilidade social corporativa não é algo isento de implicações jurídicas”, destacou o auditor.
Diligência promocional e compliance seletivo
Um dos principais pontos da fala foi a distinção entre dois tipos de diligência empresarial: a devida diligência corporativa, voltada a interesses comerciais como fusões e aquisições, e a devida diligência promocional, focada em prevenir violações de direitos humanos e trabalhistas. “Na diligência promocional, o beneficiário direto é o trabalhador, não o acionista”, explicou.
Ele alertou para a prática do compliance seletivo, em que empresas apenas adotam medidas que favorecem sua imagem e descartam parceiros problemáticos sem enfrentar as causas das violações: “É o ‘cut and run’ – corta e corre. Exclui o fornecedor e desaparece”.
Um novo modelo de responsabilidade
Bignami defendeu que o conceito de responsabilidade social corporativa está evoluindo: “É um direito em construção. O que hoje é voluntário, amanhã pode ser obrigatório”. Ele citou diversas normas internacionais que já apontam para esse caminho, como as diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e os princípios da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre empresas e direitos humanos.
Ao final, apresentou o chamado “ciclo da devida diligência promocional”, que inclui seis etapas:
- incorporar a conduta empresarial responsável,
- identificar riscos,
- prevenir e mitigar impactos,
- monitorar resultados,
- comunicar com transparência, e
- remediar ou indenizar danos.
“Esse é o ciclo que, cada vez mais, está sendo transformado em lei. E, quando for, vamos poder cobrar juridicamente se a empresa agiu de forma diligente ou não.”
Com tom direto, Bignami fez um apelo aos magistrados e operadores do direito presentes: “Nós, que lidamos com a proteção do trabalho, precisamos liderar esse debate. A maioria das violações de direitos humanos nas empresas está relacionada ao trabalho”.
A fala foi encerrada com um chamado à ação: a construção de um modelo de responsabilidade que vá além do discurso e passe a integrar, de fato, o funcionamento das empresas. “A responsabilidade social não é só marketing. É um compromisso com a dignidade humana.”
O sistema interamericano e o direito ao trabalho
Na sequência, a pesquisadora Marina de Almeida Rosa abordou o tema “Casos de Trabalho Forçado ou Degradante no Sistema Interamericano de Direitos Humanos”.
A painelista trouxe uma análise crítica sobre o papel do Sistema Interamericano de Direitos Humanos no enfrentamento ao trabalho forçado, escravo ou degradante nas Américas. Destacou avanços e lacunas históricas da Comissão e da Corte Interamericana na proteção do Direito ao Trabalho.
Marina lembrou que o sistema interamericano só reconheceu, de fato, o Direito ao Trabalho como passível de ser demandado internacionalmente em 2017. Antes disso, "o sistema tratava o trabalho apenas como liberdade individual, não como condição digna de existência". Ela mencionou que, até esse ponto, casos de trabalho forçado eram interpretados exclusivamente sob a ótica da escravidão moderna, ignorando aspectos como discriminação, remuneração injusta ou condições inseguras.
Avanços e resistências no reconhecimento do Direito ao Trabalho
A pesquisadora lembrou que a mudança de postura veio com o caso de um sindicalista demitido no Peru, que levou a Corte Interamericana a reinterpretar obrigações dos estados frente ao Direito ao Trabalho. Isso provocou resistência: “Houve uma tentativa clara de alguns governos de enfraquecer a Comissão e a Corte após esse reconhecimento”, afirmou.
Ela criticou a demora histórica dos tratados internacionais em reconhecer os direitos econômicos e sociais como justificáveis. A Convenção Americana, por exemplo, segundo ela, só proíbe a escravidão de forma genérica, sem detalhar condições de trabalho digno. Já o Pacto de San Salvador, que trata do Direito ao Trabalho, não permite denúncias individuais sobre violações, exceto nos casos de greve e sindicalização. “Foi uma escolha política dos estados ao criar esses instrumentos”, disse Marina.
Relatórios regionais e retratos da exploração nas Américas
A pesquisadora também comentou relatórios regionais da Comissão Interamericana, apontando como alguns países enfrentam violações específicas relacionadas ao trabalho forçado. Ela citou:
- Colômbia, onde crises migratórias têm levado mulheres e crianças refugiadas da América Central e Venezuela a serem exploradas, inclusive em contextos de exploração sexual.
- Bolívia, onde a exploração de mão de obra indígena foi associada diretamente ao legado do colonialismo espanhol.
- Haiti, onde grupos criminosos controlam territórios inteiros e submetem crianças a trabalho forçado e recrutamento para conflitos armados.
- El Salvador, com casos semelhantes envolvendo grupos criminosos e escravidão sexual de meninas e adolescentes.
Brasil: destaque e omissão
Ao falar sobre o Brasil, Marina destacou: “O Brasil é o único país do continente que teve um capítulo inteiro dedicado às condições de trabalho em um relatório da Comissão". A visita da Comissão em 2018 revelou um quadro grave de violações trabalhistas, incluindo persistência de trabalho análogo à escravidão, falta de punições adequadas e atuação insuficiente de instituições públicas — especialmente pela escassez de fiscais.
Ela apontou, no entanto, uma ausência importante: “O relatório não menciona a Justiça do Trabalho brasileira. Há uma omissão que precisa ser enfrentada. É fundamental que a Justiça do Trabalho se aproxime mais do sistema interamericano”.
Dados, políticas públicas e justiça: caminhos para garantir direitos
Marina destacou, ainda, a necessidade de os países das Américas adotarem medidas estruturais, como coleta de dados desagregados por raça, gênero e classe, políticas públicas específicas e fortalecimento dos sistemas de justiça. “Sem isso, continuamos encobrindo a discriminação e negando direitos básicos a milhões de pessoas”.
Ao longo de sua apresentação, ela reforçou que o trabalho digno deve ser entendido como um direito humano essencial, e não apenas como uma questão econômica. "Sem acesso ao trabalho decente, a maioria dos outros direitos também fica fora de alcance", frisou a pesquisadora.
Maior integração e compromisso com o trabalho decente
A ministra Delaíde Miranda Arantes refletiu sobre o papel da Justiça do Trabalho e a importância do compromisso institucional com os direitos humanos no mundo do trabalho. Ela recordou a trajetória histórica da Justiça do Trabalho no Brasil, que completará 84 anos de criação no próximo 1º de maio.
A ministra manifestou preocupação com a ausência da Justiça do Trabalho nos relatórios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, destacando a necessidade de maior aproximação com o sistema interamericano: “Não precisamos que a Marina fosse aqui dizer que a Justiça do Trabalho não faz parte do relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Então, temos ainda um caminho muito longo a percorrer e esse painel é da maior relevância.”
Por fim, Delaíde pontuou os avanços normativos e institucionais em relação ao trabalho decente: “É importante também tomarmos conhecimento de que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, só a partir de 2017, passa a analisar a questão do trabalho decente. Nós temos, de 1999, a agenda de trabalho decente da OIT. Temos o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre trabalho decente, e a nossa Constituição Federal, de 1988.”